sábado, 26 de novembro de 2016

Fidel Castro: da causa comunitária, a última casa comum

Fidel cessou o sopro vital, mas não morrerá no tempo porque ele é memória viva aos milhões de cubanos que o amam, aos milhares de estudiosos pelo mundo que o admiram e o estudam. Mas também permanecerá vivo como miserável senso comum aos que não conseguem entender a própria vida, mas se acham esclarecidos como opinistas míopes da histórica conjuntura internacional. 

Fidel chegou a ultima etapa do 'Comum' donde ninguém escapará, Ele deixa os ideias da comunidade de iguais e chega a 'casa comum' no ciclo natural. Enganoso achar que Fidel vivia em uma ilha, ele era/foi uma América espoliada em esperanças, uma trincheira de resistência, uma placa tectônica que movimentou continentes.

Intrigante, é saber que ainda veremos muita gente neste mundo considerando a morte uma senhora governante com mão de ferro, porque enquadra todos como iguais. A morte, esta ditadora senhora é uma militante da casa comum, do ato final, da categórica regra natural do inevitável! Morrer não significa desaparecer, mas desaparecer pode significar nunca ter existido.

Muitos vão deixar este mundo sem serem lembrados até mesmo por aqueles que passaram uma vida ao seu lado. Triste, desolador talvez não seja morrer fisicamente porque este é o ciclo inevitável, mas morrem na memória do tempo porque o orgulho, a arrogância, a petulância são como cal que dissolve as lembranças dos insignificante. Dentre estes, talvez esteja eu, você, aquele que julga o mundo e não julga a si mesmo. Fidel Castro permanecerá vivo mesmo que na última casa comum- e de nós o que sobrará?

Neuri Adilio Alves - Filósofo Aprendiz, Educador Popular 

sábado, 12 de novembro de 2016

OS ESTUDANTES QUEREM UM OUTRO BRASIL E UM OUTRO TIPO DE POLÍTICA.

''Os jovens que estão ocupando os lugares de ensino estão revelando mais inteligência, eles querem dizer:: estamos cansados do tipo de Brasil que vocês nos apresentam''

Seria ingênuo pensar que o movimento dos estudantes ocupando escolas e universidades se esgota na crítica de um dos mais vergonhosos projetos já havidos, da reforma do ensino médio ou no protesto contra a PEC 241 da Câmara e agora PEC 55 do Senado, PEC da brutalização contra os mais vulneráveis da nação. O que se esconde atrás das críticas é algo mais profundo: a rejeição do tipo de Brasil que até agora construímos e de política, corrupta feita por parlamentares em proveito próprio. Junto vem o lado mais positivo: a demanda por uma outra forma de construir o Brasil e de reinventar uma democracia, não de costas para o povo, mas com ele participando nas discussões e decisões das grandes questões nacionais.


Já abordei neste espaço este tema, a propósito do movimento dos jovens de 2013. Este movimento retorna com mais vigor e mais capacidade de se impôr aos responsáveis pelos destinos de nosso país. Três autores continuam a nos inspirar, pois sempre lutaram por um outro Brasil e sempre foram derrotados.

O primeiro é Darcy Ribeiro num texto de 1998 como prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos:”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão-somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”. Esta lógica do ultraliberalismo atual se radicalizou no Brasil.

O segundo é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil:”A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (São Carlos 2011):”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se refundar; a refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade”(contra-capa). Essa hora chegou.

O terceiro é um escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848):”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”. Tudo indica que este momento de realização está a caminho.

Os jovens que estão ocupando os lugares de ensino estão revelando mais inteligência, a exemplo da jovem Ana Júlia Ribeiro, falando na Câmara Legislativa do Paraná, do que a maioria dos representantes sentados em nossas casas parlamentares, interessados mais em seus negócios e na própria reeleição do que no destino do povo brasileiro.

Sem definição partidária, com seus cartazes incisivos ,os estudantes nos querem dizer:: estamos cansados do tipo de Brasil que vocês nos apresentam, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, na qual as grandes maiorias são feitas invisíveis e jogadas nas periferias, sem estudo, sem saúde, sem segurança e sem lazer Queremos outro Brasil que esteja à altura da nossa consciência, feito de povo misturado e junto, alegre, sincrético e tolerante.

Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo recololizados, esta é a palavra exata, recolonizados, pois as potências centrais antes colonizadoras, nos querem manter colonizados, condenando-nos a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities: grãos, carnes, minérios. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente, soberana e altiva.

Diz com fina sensibilidade social Souza Lima:”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construiu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz”(p.235). No movimento atual renasce este sonho exuberante de Brasil.

Caio Prado Júnior em sua 'A revolução brasileira' (Brasiliense 1966) acertadamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas”(p. 2).


Com os personagens que estão aí na cena política, grande parte acusada de corrupção ou feita réu ou condenada, não podemos esperar nada senão mais do mesmo. Devem ser democraticamente alijados da história para termos campo limpo para o novo.

Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima nos diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original que temos: a cultura nacional tomada no seu sentido mais amplo que envolve o econômico, o politico e o especificamente cultural: ”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficiente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais”(p.127).

Por este texto, Souza Lima se livra da crítica justa de Jessé Souza, feita à maioria de nossos intérpretes do status quo histórico: “A tolice da inteligência brasileira”(Leya 2015), completada com “A radiografia do golpe”(Leya 2016).

A maioria destes clássicos intérpretes, olharam para trás e tentaram mostrar como se construiu o Brasil que temos. Souza Lima, como os jovens de hoje, olha para frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozóica, rumo ao que ele chama “uma sociedade biocentrada”.

Ou o Brasil diferente nascerá destes jovens estudantes, ou corremos o risco de perdermos novamente o carro da história. Eles podem ser os protagonistas daquilo que deve nascer.


Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2016/11/11/

sábado, 15 de outubro de 2016

A desordem mundial: o espectro da total dominação

''Quem ainda nutre admiração pela democracia norte-americana e procura se alinhar aos desígnios imperiais (como fazem neo-liberais brasileiros), encontrará aqui vasto material para reflexão crítica e dados para uma leitura do mundo mais diferenciada.''

'A Desordem Mundial: o espectro da total dominação'- O título é do último livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira (Civilização Brasileira, 2016), o nosso mais respeitado analista de política internacional. O autor teve acesso às mais seguras fontes de informação, a múltiplos arquivos, aliando tudo a um vasto conhecimento histórico. São 643 páginas densas, mas escritas com tal fluidez e elegância que parece estarmos lendo um romance histórico.

Moniz Bandeira é antes de mais nada, um minucioso pesquisador e, ao mesmo tempo, um militante contra o imperialismo estadunidense, cujas entranhas corta com um bisturi de cirurgião. Não sem razão, foi preso entre 1969 e 1970 e novamente em 1973 pelo temível Centro de Informações da Marinha (Cenimar), pois se opunha criticamente, no contexto da guerra-fria, ao principal suporte da ditadura: os Estados Unidos.

Os materiais de que dispõe, lhe permitem denunciar a lógica imperial presente no sub-título:”guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanitárias”. Quem ainda nutre admiração pela democracia norte-americana e procura se alinhar aos desígnios imperiais (como fazem neo-liberais brasileiros), encontrará aqui vasto material para reflexão crítica e dados para uma leitura do mundo mais diferenciada.

Dois motes orientam o centro do poder do estado norte-americano com seus inumeráveis órgaõs de segurança interna e externa:”um mundo e um só império” ou”um só projeto e o espectro da total dominação (full-spectrum dominance/superiority)”. Quer dizer, a política externa norte-americana se inspira no (ilusório) “excepcionalismo”, do velho “destino manifesto”, uma variante “do povo eleito por Deus, raça superior”, chamada a difundir no mundo todo a democracia, a liberdade e os direitos (sempre na interpretação imperial que emprestam a estes termos) e se considerar (pretensamente) “a nação indispensável e necessária”, ”âncora da segurança global” ou o “único poder”(lonely power).

Já no século XVIII Edmund Burke (1729-1797) e no século XIX o francês Alexis Tocqueville (1805-1859), pressentiram que o presidente norte-americano detinha mais poderes que um monarca absolutista. Isso degeneraria numa “military democracy”(p. 55). Efetivamente, sob George W.Bush por ocasião dos atentados às Torres Gêmeas”, se instaurou a verdadeira democracia militar, com a declaração do “war on terror” e a publicação do “patriotic act” que suspendeu os direitos civis básicos até o habeas corpus e a permissão de torturas. Na verdade isso configura um estado terrorista.

Como vários cientistas norte-americanos, citados por Moniz Bandeira (p.470), afirmaram: “não há mais uma democracia mas uma “economic élite domination” à qual se deve submeter o presidente. As decisões são tomadas pelo complexo industrial-militar (a máquina de guerra), por Wall Street (as finanças), por ponderosas organizações de negócios e por um pequeno número de norte-americanos muito influentes. Para garantir o “espectro da total dominação” são mantidas 800 instalações militares pelo mundo afora, a maioria com ogivas nucleares e 16 agências de segurança com 107.035 civis e militares. Como afirmou H. Kissinger:”a missão da América é levar a democracia, se necessário, pelo uso da força”(p.443). Neste lógica, de 1776-2015, portanto, em 239 anos de existência dos EUA, 218 foram anos de guerra, apenas 21 de paz (p. 472).

Esperava-se que Barack Obama desse outro rumo a esta história violenta. Ilusão. Trocou apenas os nomes, mas manteve todo o espírito excepcionalista e as torturas em Guantánamo e em outros lugares fora dos EUA como no tempo de Bush. À “perpetual war” deu o nome de “Oversee Contingency Operation”. Por decisão pessoal (criminosa), autorizou centenas de ataques com drones e com aviões não pilotados, vitimando as principais lideranças árabes (p. 476).

Com certa decepção, constatou Bill Clinton, “desde 1945 os Estados Unidos não venceram nenhuma Guerra” (p.312). Do Iraque fugiram em sigilo e na calada da noite (p.508).

O livro de Moniz Bandeira entra em detalhes mínimos sobre a Guerra na Ucrânia, na Criméia e no Estado Islâmico na Síria, com os nomes dos principais atores e datas.

A conclusão é avassaladora:”Onde quer que os Estados Unidos intervieram, como o “specific goal of bringing democracy”, a democracia constitui-se de bombardeios, destruição, terror, massacres, caos e catástrofes humanitárias…entraram para defender suas necessidades e interesses econômicos e geopolíticos, seus interesses imperiais”(p.513).

A mole de informações arroladas sustentam esta afirmação, não obstante as limitações que sempre poderão ser apontadas.

Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos, Record 2009.

sábado, 1 de outubro de 2016

NÓS ERRAMOS

''Em que baú envergonhado guardamos os autores que ensinam a analisar a realidade pela óptica libertadora dos oprimidos?''

Continuo a fazer coro com o “Fora Temer” e a denunciar, aqui na Europa, onde me encontro a trabalho, a usurpação do vice de Dilma como golpe parlamentar. Porém, as forças políticas progressistas, que deram vitória ao PT em quatro eleições presidenciais, devem fazer autocrítica.

Não resta dúvida, exceto para o segmento míope da oposição, que os 13 anos do governo do PT foram os melhores de nossa história republicana. Não para o FMI, que mereceu cartão vermelho; não para os grandes corruptores, atingidos pela autonomia do Ministério Público e da Polícia Federal; nem para os interesses dos EUA, afetados por uma política externa independente; nem para os que defendem o financiamento de campanhas eleitorais por empresas e bancos; nem para os invasores de terras indígenas e quilombolas.

Os últimos 13 anos foram melhores para 45 milhões de brasileiros que, beneficiados pelos programas sociais, saíram da miséria; para quem recebe salário mínimo, anualmente corrigido acima da inflação; para os que tiveram acesso à universidade, graças ao sistema de cotas, ao ProUni e ao Fies; para o mercado interno, fortalecido pelo combate à inflação; para milhões de famílias beneficiadas pelo programas Luz para Todos e Minha Casa, Minha Vida; e para todos os pacientes atendidos pelo programa Mais Médicos.

No entanto, nós erramos. O golpe foi possível também devido aos nossos erros. Em 13 anos, não promovemos a alfabetização política da população. Não tratamos de organizar as bases populares. Não valorizamos os meios de comunicação que apoiavam o governo nem tomamos iniciativas eficazes para democratizar a mídia. Não adotamos uma política econômica voltada para o mercado interno.

Nos momentos de dificuldades, convocamos os incendiários para apagar o fogo, ou seja, economistas neoliberais que pensam pela cabeça dos rentistas. Não realizamos nenhuma reforma estrutural, como a agrária, a tributária e a previdenciária. Hoje, somos vítimas da omissão quanto à reforma política.

Em que baú envergonhado guardamos os autores que ensinam a analisar a realidade pela óptica libertadora dos oprimidos? Onde estão os núcleos de base, as comunidades populares, o senso crítico na arte e na fé?

Por que abandonamos as periferias; tratamos os movimentos sociais como menos importantes; e fechamos as escolas e os centros de formação de militantes?

Fomos contaminados pela direita. Aceitamos a adulação de seus empresários; usufruímos de suas mordomias; fizemos do poder um trampolim para a ascensão social.

Trocamos um projeto de Brasil por um projeto de poder. Ganhar eleições se tornou mais importante que promover mudanças através da mobilização dos movimentos sociais. Iludidos, acatamos uma concepção burguesa de Estado, como se ele não pudesse ser uma ferramenta em mãos das forças populares, e merecesse sempre ser aparelhado pela elite.

Agora chegou a fatura dos erros cometidos. Nas ruas do país, a reação ao golpe não teve força para evitá-lo.

Deixemos, porém, o pessimismo para dias melhores. É hora de fazer autocrítica na prática e organizar a esperança.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do ouro” (Rocco), entre outros livros.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

ANTES DE SOPRAR A VELA DA ALEGRIA, MUITO OBRIGADO!





Agradeço com fraternal abraço a cada um de vocês que reservou tempo na corrida vida cotidiana para felicitar-me em meu aniversário esta semana. Queria nominar as centenas, cada um de vocês que aqui passou na linha do tempo, na caixinha inbox, no telefone, por bilhete ou em memórias e pensamentos.

A vida da gente é longa, embora possamos pensa-la como breve demais. Mas quando olho para minha existência estou olhando para o universo, refutando a brevidade e me certificando há quanto tempo estou por aqui como matéria, como existência, como reinvenção de mim mesmo, da natureza, do espirito, das certezas que me acalentam e das incertezas que inquietam. Sei que minha existência no ciclo in natura é como uma etapa de passagem por aqui até a próxima reinvenção que vislumbro lá pelos 100 anos - não se enganem tenho um caminho longo pela frente.


Quantos são os momentos que atribuímos a vida seu aspecto de dureza, estrada desafiadora, horizonte incerto e de alegrias tristes: aquelas que comemoramos sentido que falta algo. Mas não fomos feitos para as coisas 'moles', frágeis da existência, embora possam parecer. Fomos feitos para doses de coragem, porções de suspiros, medidas de lagrimas, jardins de encantos, trilhas de esperanças, turbilhões de sonhos e a grande colheita: viver a vida. - E eu tenho vivido muito a vida, dividindo partes com vocês!

Queria enviar uma lembrança a cada um, mas a crise que assola o país me impossibilitou. O governo assumiu prometendo um outro Brasil assim que tomou posse como interino, mas não conseguiu melhorar a si mesmo, e sinaliza piorar a vida de todos nós. Prevejo que meu aniversário em 2017 não terá chapéu, língua de sogra, velinhas, balões, bolo, e mimos - mas terá muito luta com certeza.

Na falta de esperanças que algo melhore em poucos anos, na impossibilidade de enviar um pedaço de bolo para vocês, compartilho de minhas alegrias e uma parte vital de meu coração, pois este se regenera na felicidade renovada, lembrando e relendo agora cada palavra que aqui vocês deixaram para mim.

Antes que eu sopre a vela festiva de minhas quatro décadas de vida e mais uns remendos - não esqueçam do aniversário da democracia domingo. Vistam-se de consciência... Boas Festas !!!

Professor Neuri Adilio Alves

sábado, 24 de setembro de 2016

Charter school: uma escola pública que caminha e fala como escola privada

Em conversa com a professora Nora Krawczyk, da Unicamp, pesquisador americano Dwight Holmes explica por que esse modelo de ensino vem ganhando espaço em seu país e ameaça o Brasil.

Escolas charter têm pouquíssimos professores sindicalizados
Vivemos no Brasil um intenso processo de mudança da racionalidade organizacional da educação, que afeta de maneira radical a lógica de gestão e o trabalho na escola pública. As escolas charter (charter schools), modelo de escola pública que adota a lógica da gestão privada, têm sido apontadas como principal referência de excelência para as mudanças que se tenta implantar. São glamouralizadas e exaltadas no Brasil (como se faz com supostas excelências da gestão privada) sem que haja um verdadeiro debate sobre o tema.
Até que ponto essa visão midiática das escolas charter é real? Onde terminam suas qualidades e começa a mitificação? Foi em busca de respostas para questões como essas que vim para o berço das escolas charter, os Estados Unidos, estudar o sistema de educação local, com bolsa concedida pela Fapesp.
Dado o momento que o Brasil vive, no qual se tenta impor soluções e contaminar todos os espaços (inclusive o educacional) com posturas conservadoras e antidemocráticas, um verdadeiro debate sobre o que são as escolas charter, como funcionam e quais consequências trazem para a escola pública parece fundamental. Afinal, com o afastamento de Dilma Rousseff, o governo interino parece disposto a favorecer mudanças radicais na gestão da escola pública, dando suporte a medidas tomadas pelos estados, como a extinção dos concursos públicos para professor em Goiás, e outras em andamento como os modelos de escolas charter.
Pesquisador em educação desde 1977 e das escolas charter nos Estados Unidos, Dwight Holmes, analista sênior de políticas com foco em questões de equidade na educação para a Associação Nacional de Educação (NEA), explica em entrevista ao Carta Educação a origem desse modelo, quais os interesses e de que maneira essas escolas aprofundam desigualdades.
Leia a seguir:
Carta Educação: O que é uma escola charter? Como elas começaram?

Dwight Holmes: Para começar, gostaria de dizer que eu não estou falando em nome da NEA. São minhas próprias opiniões. Em poucas palavras, escola charter é uma escola mantida com recursos públicos, mas cuja gestão é privada. Ela tem origem na década de 1980, curiosamente pensada para ser uma escola liderada por professores e para acolher os alunos que fracassavam nas escolas tradicionais. Pensavam que poderiam contornar regras administrativas para poder experimentar diferentes abordagens de ensino com estudantes que enfrentam desafios maiores. Lamentavelmente, essa boa ideia virou uma indústria poderosa, que compete com as escolas públicas para atrair estudantes e recursos públicos preciosos.
CEO livro Myths and lies about who’s best, de David C. Berliner e Gene V. Glass, mostra que a escola charter é um tipo de escola que anda e fala como uma escola privada, mas na realidade é uma escola pública, porque recebe dinheiro dos contribuintes. Você concorda?
DH: Sim. As escolas charter são públicas porque recebem dinheiro dos governos estaduais e federal, com os mesmos critérios que as escolas públicas tradicionais. As regras de governança e de responsabilização variam muito segundo as leis de cada estado para as escolas charter. Por isso, podemos dizer que elas funcionam mais ou menos como as escolas particulares, dependendo do estado onde estão localizadas e das agências que as autorizam.
Em seguida, é importante entender que existem duas grandes categorias de escolas charter. Existem as chamadas “Mamãe & Papai Charter”, escolas sem fins lucrativos iniciadas por educadores locais ou líderes comunitários e geridas de forma independente. E existem as escolas charter que são parte de uma “organização de gestão da educação” (Education Management Organization, em inglês), muitas dessas consideradas “cadeias nacionais”. Algumas delas são organizações sem fins lucrativos, enquanto outras indiretamente acabam sendo puro business. Atualmente, cerca de 60% de todas as escolas charter são independentes (Mamãe e Papai) e 40% são administradas por contrato com organizações de gestão da educação, sendo metade organizações com fins lucrativos.
Evidentemente também há aspectos condenáveis em parte das escolas do tipo Mamães & Papai. Há casos de fraudes entre elas, e algumas são abertas por grupos interessados em se ver livres de problemas das escolas tradicionais, como alunos indisciplinados e crianças com dificuldades de aprendizagem.
CE: Você disse que os regulamentos das escolas charter são diferentes de um estado para o outro. Em linhas gerais, quais regras são mais comuns e onde estão as diferenças mais importantes entre os estados?
DH:  A educação pública nos EUA é um sistema federal de 50 estados, cada qual com um próprio sistema. A Constituição dos EUA não faz nenhuma menção à educação pública. As únicas leis federais que se aplicam a todas as escolas do país, incluindo as escolas charter, são aquelas que dizem respeito à proteção dos direitos civis para os estudantes (com base na etnia, religião, nacionalidade, deficiências) e às condições vinculadas ao dinheiro federal para o estado, distrito ou escola.
Em média, as receitas federais representam 10% da receita total da escola, e 90% são provenientes de governos estaduais e municipais. Em geral, onde o poder político é mantido pelo Partido Republicano, as leis para as escolas charter são mais flexíveis, permitem maior liberdade tanto para a agência que autoriza sua criação quanto para as próprias instituições de ensino. Onde o Partido Democrata está no poder e a influência de sindicatos de professores é mais forte, as leis para as escolas charter tendem a ser mais restritivas e existe maior controle e responsabilização das escolas. Há grandes exceções a essa regra geral, como a Califórnia: um estado fortemente democrata, com um sindicato docente muito atuante e leis pró-charter.

CE: Você sabia que o Brasil também tem escolas charter? Saiba mais como esse modelo começou no País e na região:
Na América Latina, o país pioneiro na transferência de escolas públicas para gestão privada foi o Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), em pleno processo de privatização de todos os serviços públicos. Atualmente, no entanto, a referência em matéria de escola charter não apenas na região e no mundo são os Estados Unidos.
No Brasil, esse processo começou em 2005, em Pernambuco, com a implantação de Centros de Ensino em tempo integral (Procentro) pela Secretaria de Educação do Estado, em parceria com o Instituto de CoResponsabilidade pela Educação (ICE). Essa experiência recebeu muita atenção da mídia e passou a ser divulgada por fundações e organizações sociais ligadas à educação como um modelo de escola charter.
Outros estados, tais como Sergipe, Ceará, Piauí e Rio de Janeiro adotaram variações desse modelo. Já em Goiás, o caminho tem sido a transferência da gestão das escolas para organizações sociais, com mudanças das condições de trabalho, como o fim do concurso público e o pagamento de bônus aos professores conforme o rendimento dos alunos – o que mantém o baixo nível salarial. No estado de São Paulo, Campinas e outros municípios também vêm transferindo a gestão escolar para organizações sociais, por enquanto em unidades de Educação Infantil.

























CE: Há algum tipo de recomendações para os estados?
DH: A Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter, um importante lobby pró-charter, publicou um “modelo de lei para a escola charter”, que descreve o mundo como eles gostariam que fosse. Ela também classifica os estados de acordo com a proximidade de suas leis para as escolas charter com a “lei modelo”. Nesse modelo, os componentes essenciais de uma lei para escola pública charter são a autorização ilimitada do número de escolas charter, a possibilidade de criar diferentes tipos de escolas charter, incluindo virtuais/on-line, e que organizações externas estejam autorizadas a gerir escolas charter. Ela quer também as escolas charter isentas das leis e convenções estaduais coletivas, evitando que os professores possam se organizar em sindicato.
CE: Como assim? Os professores que trabalham nas escolas charter não podem participar do sindicato? O sindicato de professores tem possibilidades de negociar as condições de trabalho desses docentes?
DH: São pouquíssimos os professores das escolas charter sindicalizados. Um dos estados onde o NEA e a Federação Americana de Professores (AFT) estão tendo algum sucesso nas campanhas para organizar os professores das escolas charters é Nova Jersey. Mas isso tem preocupado bastante a associação das escolas charter local, principalmente pelas condições deploráveis de trabalho dos professores e porque os professores não têm voz nas escolas charter.
CE: Como são as condições de trabalho dos professores na escola charter? São diferentes daquelas das escolas públicas tradicionais?
DH: Muitas. Os estados não exigem que os professores das escolas charter tenham a certificação correspondente para ensinar. Como disse, muito poucos são sindicalizados e, embora AFT e NEA estejam atuando nessas escolas, os números ainda são pequenos. Os professores das escolas charter tendem a ser mais jovens, menos qualificados, com menos experiência, recebem menos, têm menos benefícios e volume de trabalho superior. Na Flórida, por exemplo, o salário médio anual dos professores nas escolas charter em 2011-2012 era de 38.459 dólares e nas escolas públicas tradicionais de 46.273 dólares.
A porcentagem de professores com apenas um ou dois anos de experiência era de 69% nas escolas charter e de 21% nas escolas públicas tradicionais. Além disso, as cadeias nacionais de escolas charter deixam muito pouco nas mãos dos professores sobre o que, como e quando ensinar. A maioria delas utilizam currículos estruturados e orientados para o teste. Os professores são obrigados a usar apostilhas, produzidas de forma centralizadas para todo o país.
CEComo funciona o financiamento público para as escolas charter?
DH: Em geral, recebem o mesmo financiamento por aluno que as escolas públicas tradicionais para despesas operacionais. O financiamento de capital e aquisição de instalações escolares têm sido um problema para as escolas charter na maioria dos estados. Algumas recebem grandes quantidades de contribuições privadas, embora haja poucos dados sobre isso.
CE: Quantas escolas charter existem hoje nos EUA e que porcentagem representam no total das escolas públicas?
DH: Nos Estados Unidos temos atualmente 90.189 escolas públicas, sendo 94% tradicionais. Essa relação se mantém, aproximadamente, em todos os níveis de ensino básico[1]. O ensino privado representa 24% das escolas do país e 10% de todos os alunos do ensino básico.
CE: Realmente a porcentagem de escolas charter é bastante pequena, só o 6% das escolas públicas em todo o país, mas elas têm aumentado. Por que isso está acontecendo?
DH: Por diferentes razões, mas gostaria de destacar que a administração de Obama tem sido bastante pró-charter. O Programa Federal Escolas Charter gastou mais de 3,7 bilhões de dólares ao longo dos últimos 10 anos, na criação de escolas charter em todo o país. Outro motivo é que as organizações que defendem o modelo charter como alternativa mais eficiente às escolas tradicionais têm pressionado muito para aumentar o número de escolas charter e flexibilizar ainda mais as leis que as regulam.
Uma forma de pressão é injetar grandes quantidades de dinheiro nas escolas charter para que diferentes grupos possam iniciar novas escolas charter. Um dos financiadores que se destaca é a fundação da família Walton, dona do Walmart e uma das mais ricas do país. Além do investimento em escolas charter, durante décadas investiram milhões tentando desviar fundos da escola pública às escolas privadas com bônus. De qualquer maneira, é importante destacar que o investimento federal, através do Programa Charter, tem superado os investimentos realizados por grandes fundações privadas.
CE: Um dos argumentos favoráveis às escolas charter é as famílias terem a possibilidades de escolha. O que você acha disso?
DH: Seguramente existem escolas charter “Mamãe e Papai” que trabalham bem e que, em média, são menores que as escolas públicas tradicionais. Mas hoje o setor charter de escolas públicas está dominado pelas corporações. O volume de negócios é elevado. Lembre-se que muitas dessas escolas são administradas por empresas com fins lucrativos e têm de obter seus 15% de lucros de algum lugar.
O que significa isso quando pensamos nas oportunidades educacionais para crianças e jovens? Por exemplo, uma escola tradicional pode gastar 65 mil dólares por ano em eletricidade. Se um grupo de alunos sai e vai para a escola charter, o uso de eletricidade não diminui e as contas têm de ser pagas, mas parte do financiamento vai embora junto com os alunos para as escolas charter. Os impactos negativos sobre as escolas de bairro tradicionais são enormes. E, sem falar das denúncias de segregação e mãos tratos que as crianças e jovens sofrem em algumas escolas charter.
CE: Muitas escolas fecham após um tempo de funcionamento, não?
GH: Sim, esse é um problema grave para os alunos. Temos muitas ​​interrupções na escolaridade de crianças e jovens causadas por fechamento de escolas charter. Dados de 2000- 2012, os últimos disponíveis, mostram o fechamento de 27% das escolas charter nesse período. Uma análise desses dados nos indicam que quantos mais anos de funcionamento tem a escola, maior é a probabilidade de ela fechar. Cerca de 40% não sobrevive após 12 anos desde o nascimento. No entanto, também temos um número considerável de escolas charter que deixam de funcionar já no primeiro ano de funcionamento.
CEQual é a taxa de graduações nas escolas charter e em escolas públicas tradicionais? Há diferenças por conta de diferentes etnias?
DH: Em geral, são muito mais baixas nas escolas charter vis-à-vis escolas públicas tradicionais. E isso é verdade independentemente da etnia.  Em 2015, a taxa de graduação no Ensino Médio nas escolas públicas tradicionais foi de 84%, contra 61% das escolas charter
CE: Por que corporações têm interesse nas escolas charter?
DH: Lucro. O custo da educação básica pública está se aproximando de 1 trilhão de dólares por ano, sendo 80% para pagamento de pessoal. As forças privatistas têm procurado captar de diferentes maneiras uma parte significativa desse dinheiro para si. Por exemplo, através da emissão de bônus (voucher) para pagar a mensalidade em escolas privadas para crianças pobres, benefícios fiscais para quem paga escola pública, terceirização de funções tradicionalmente desempenhadas por funcionários públicos (alimentação, transporte e limpeza) e agora, também, via escolas charter.
No geral, os milionários defensores da escola charter são obcecados em criar e expandir um sistema de educação paralelo à educação pública tradicional que reflita os valores corporativos e não seja responsável publicamente frente aos pais e a comunidades. Esse esforço exacerba a desigualdade de renda, uma vez que drena recursos de distritos escolares públicos e prejudica o seu sucesso.
Modelo ameaça educação pública precária do Brasil (Foto:
Fernando Frazão/ Agência Brasil)

CE muitas denúncias sobre corrupção nas escolas charter.
DH: Há muitos casos de corrupção em escolas charter. O governo federal dá todos aqueles milhões de dólares e não monitora o dinheiro. Os estados tampouco o fazem. A NEA pressiona para que as leis da escola charter incluam mais exigências na prestação de contas, mas existe uma resistência maciça do lobby da escola charter. Eles se queixam de regras “onerosas” e dizem que precisam de “liberdade” para inovar, mas o que conseguem é um ambiente em que ninguém sabe (ou não quer saber) onde e como o dinheiro é gasto ou se as necessidades dos alunos e professores estão sendo atendidas.
Claro que tem havido casos de corrupção na administração do ensino público também. Mas são poucos e por um bom motivo: há muitos controles contábeis e financeiros. Já o modelo de gestão da escola charter permite um truque fiscal muito hábil. Informações levantadas em  Los Angeles mostram que:  as corporações criam organizações sem fins lucrativos para gerir cadeias de escola charter e criam empresas de responsabilidade limitada para controlar as propriedades da escola.
Na Califórnia, ganham dinheiro alugando imóveis para escolas charter, pelos quais são reembolsados por verbas de agências estaduais e federais. Essas empresas podem até emitir títulos negociáveis no mercado que, em última instância, estão garantidos pelo contribuinte. Houve recentemente um escândalo em Ohio, onde encontraram dados falsos sobre o sucesso das escolas charter de uma dessas corporações, usados para receber mais verbas federais.
CE: Por que o número de escolas charter tem aumentado e o mesmo não acontece com o sistema de bônus para as escolas privadas?
DH: Boa pergunta. Não tenho certeza, mas certamente os americanos entendem que é impossível ter o controle do dinheiro público se ele é entregue às escolas privadas. A maioria das escolas que aceitam estudantes com bônus são escolas religiosas. Acho que isso também pesa porque duvido que as pessoas estejam de acordo que os alunos recebam educação religiosa com dinheiro público.
CE: A escola charter é inevitável? Se sim, por quê?
DH: No curto e médio prazo, com certeza. Em parte, porque elas preenchem uma demanda social e uma parte dessas escolas são bem-sucedidas. Mas principalmente porque elas servem aos interesses políticos de capturar o máximo de orçamento da educação pública para o lucro privado e de minar os professores e seus sindicatos. Isso é muito sério porque exacerba ainda mais as desigualdades já existentes em nosso sistema de educação pública e serve como uma distração para os passos reais necessários para melhorá-la.
*Nora Krawczyk é professora da Faculdade de Educação no Departamento de Ciências Sociais e Educação e membro do Grupo Políticas Públicas e Educação na Unicamp. Atualmente faz pós-doutorado na Universidade de Maryland, EUA. norak@unicamp.br 

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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

DEZ POSSÍVEIS LIÇÕES APÓS O IMPEACHMENT

Seguramente é cedo ainda para tirar lições do questionável impeachment que inaugurou uma nova tipologia de golpe de classe via parlamento. Estas primeiras lições poderão servir aos que amam a democracia e respeitam a soberania popular, expressa por eleições livres e não em ultimo lugar ao PT e aliados. Os que detêm o ter, o poder e o saber que se ocultam atrás dos golpistas se caracterizam por não mostrar apreço à democracia e por se lixar pela situação de gritante desigualdade do povo.

Primeira lição é alimentar resiliência, vale dizer, resistir, aprender dos erros e derrotas e dar a volta por cima. Isso implica severa autocrítica, nunca feita com rigor pelo PT. Precisa-se ter claro sobre qual projeto de país se quer implementar.

Segunda lição: reafirmar a democracia, aquela que ganha as ruas e praças, contrariamente da democracia de baixa intensidade, cujos representantes, com exceções, são comprados pelos poderosos para defender seus interesses corporativos..

Terceira lição: convencer-se de que um presidencialismo de coalizão é um logro, pois desfigura o projeto e induz à corrupção. A alternativa é uma coalização dos governantes com os movimentos sociais e setores dos partidos populares e a partir deles pressionar os parlamentares.

Quarta lição: convencer-se de que o capitalismo neoliberal, na atual fase de altíssima concentração de riqueza, está dilacerando as sociedades centrais e destruindo as nossas. O neoliberalismo atenuado, praticado nos últimos 13 anos pelo PT e aliados permitiu fazer a maior transformação social na história do Brasil com a melhoria de vida de quase 40 milhões de pessoas, com o aumento dos salários, com facilidade de crédito, com desonerações fiscais, mas mostrou-se, no fundo, insuficiente. Grande erro do PT foi: nunca ter explicado que aquelas ações sociais eram fruto de uma política de Estado. Por isso criou antes consumidores que cidadãos conscientes. Permitiu adquirirem bens pessoais (a linha branca) mas melhorou pouco o capital social: educação, saúde, transporte e segurança. Bem disse frei Betto: gerou-se “um paternalismo populista que teve início quando se trocou o Fome Zero, um programa emancipatório, pelo Bolsa Família compensatório; passou-se a dar o peixe sem ensinar a pescar”. No atual governo pós golpe, a radicalizada política econômica neoliberal de ajustes severos, recessiva e lesiva aos direitos sociais seguramente vai devolver à fome e à miséria os que dela foram tirados.

Quinta lição: é urgente dar centralidade à educação e à saúde. O governo Lula-Dilma avançou na criação de universidades e escolas técnicas. Mas cuidou pouco da qualidade seja da educação seja da saúde. Um povo doente e ignorante nunca dará um salto rumo a uma prosperidade sustentável. Tanto o filho/a de rico quanto de pobre tem direito de frequentar a mesma escola de qualidade.

Sexta lição: colocar-se corajosamente ao lado das vítimas da voracidade neoliberal, denunciando sua perversidade, desmontando sua lógica excludente, indo para as ruas, apoiando demonstrações e greves dos movimentos sociais e de outros segmentos.

Sétima lição: colocar sob suspeita tudo o que vem de cima, geralmente fruto de políticas de conciliação de classes, feitas de costas e à custa do povo. Estas políticas vem sob o signo do mais do mesmo. Preferem manter o povo na ignorância para facilitar a dominação e combatem qualquer espírito critico.

Oitava lição: é urgente a projeção de uma utopia de um outro Brasil, sobre outras bases, a principal delas, a originalidade e a força de nossa cultura, dando centralidade à vida da natureza, à vida humana e à vida da Mãe Terra, base de uma biocivilização. O desenvolvimento/crescimento é necessário para atender, não os desejos, mas as necessidades humanas; deve estar a serviço, não do mercado, mas da vida e da salvaguarda de nossa riqueza ecológica. Concomitante a isso urge reformas básicas, da política, da tributação, da burocracia, da reforma do campo e da cidade etc.

Nona lição: para implementar essa utopia faz-se indispensável uma coligação de forças políticas e sociais (movimentos populares, segmentos de partidos, empresários nacionalistas, intelectuais, artistas e igrejas) interessadas em inaugurar o novo viável, que dê corpo à utopia de outro tipo de Brasil.

Décima lição: esse novo viável tem um nome: a radicalização da democracia que é o socialismo de cunho ecológico, portanto, ecosocialismo. Não aquele totalitário da Rússia e o desfigurado da China que, na verdade, negam a natureza do projeto socialista. Mas o ecosocialismo que visa realizar potencialmente o nobre sonho de cada um dar o que pode e de receber o que precisa, inserindo a todos, a natureza incluída.

Esse projeto deve ser implementado já agora. Como expressou a ancestral sabedoria chinesa, repetida por Mao: “se quiser dar mil passos, comece já agora pelo primeiro”. Sem o que jamais se fará uma caminhada rumo ao destino desejado. A atual crise nos oferece esta especial oportunidade que não deverá ser desperdiçada. Ela é dada poucas vezes na história e agora é uma delas.

*Teólogo, filósofo, escritor e articulista do JB on line. Escreveu: Que Brasil queremos? Vozes 2000.