quinta-feira, 17 de março de 2016

VOCÊ NÃO TEM MAIS PROTEÇÃO CONTRA AGENTES DA LEI


''Quando pegarem sua vida íntima, debocharem de seus gostos, venderem sua intimidade, aproveite sua descida aos infernos para fazer contrição, confissão, talvez comunhão).''

Esqueçam por um momento que foram Dilma e Lula os grampeados ilegalmente ontem à tarde. Pensem que, agora, não há mais limite algum ao grampo ilegal e a seu uso igualmente ilegal. A qualquer momento, um policial e um juiz podem mandar gravar você.

Por Renato Janine Ribeiro*

Você, empresário, psicólogo, o que seja. Conheço psicólogos que atendem pelo telefone. Podem ser grampeados – e com boas razões,
porque, afinal, há clientes que superfaturam ou corrompem, e que contam isso ao terapeuta.

Há sacerdotes que ouvem confissões. Confissão é de coisa errada, não é? Ótima razão para gravar e apurar. Empresários podem sonegar, ótima justificativa para grampeá-los, todos, não é? Mesmo que não soneguem. Isso já começou, quando o sigilo acusado-advogado foi rompido. Claro, o acusado é bandido, não é?

E nestas gravações, caro amigo, cara amiga, podem descobrir coisas que nem desonestas são, mas que vão te causar um mal danado. Podem descobrir, empresário, que você pretende lançar um novo produto da praça. E podem divulgar este segredo para seu concorrente. Podem descobrir que o analisando teve um filho antes de casar, que pretende reconhecê-lo, mas que está difícil fazer isso porque vai dar problemas com o cônjuge. Todo mundo tem uma vida íntima. Esta vida íntima pode ser gravada. Pode ser divulgada pela Internet ou vendida a uma pessoa que não gosta de você.

É por isso que as liberdades burguesas – faço questão de usar o nome meio pejorativo que a esquerda lhes deu, mas que tem uma certa razão, porque são liberdades do indivíduo contra a interferência do Estado – são tao importantes.

Hoje muitos estão felizes porque acham que pegaram Lula e Dilma. Na verdade, pegaram você. Você não tem mais proteção contra os agentes da lei. Eles farão com você o que quiserem. Poderão chantagear você.

E não venha com o quem não deve não teme. A vida íntima não é feita de ilegalidades. Ela é feita de segredos, sim, que ninguém tem o direito de invadir. Ninguém tem o direito de saber uma multidão de coisas que são suas. OK, Mark Zuckerberg sabe. Mas ele está interessado em big data e não em você especificamente.

Então fique contente, e quando sua vida pessoal for exposta, lembre que você apoiou isso.

(Reflexão depois de ouvir a gravação Lula-Eduardo Paes. Nada de relevante para a sociedade saber. Nada mesmo. Puro exercício de prepotência: vejam quem manda. E mesmo isso – a brincadeira de Paes que Lula, você tem alma de pobre – está vindo à tona. Quando pegarem sua vida íntima, debocharem de seus gostos, venderem sua intimidade, aproveite sua descida aos infernos para fazer contrição, confissão, talvez comunhão).

*Renato Janine Ribeiro - Filósofo, Professor, ex-ministro da Educação

segunda-feira, 7 de março de 2016

AMEAÇAS À MÃE TERRA E COMO ENFRENTÁ-LAS

''Se não começarmos com mudanças substanciais o futuro comum Terra-Humanidade corre risco. Vivemos tempos de urgência e de irreversibilidade.''

Há quatro ameaças que pesam sobre a nossa Casa Comum e que exigem de nós especial cuidado.

A primeira é a visão pobre da Terra sem vida e sem propósito dos tempos modernos. Ela foi entregue à exploração impiedosa em vista do enriquecimento. Tal visão que trouxe benefícios inegáveis, acarretou também um desequilíbrio em todos os ecossistemas que provocaram a atual crise ecológico generalizada. Nesse afã foram eliminados povos inteiros como na América Latina, devastaram-se a floresta atlântica e, em parte, a Amazônia e o cerrado.

Em janeiro de 2015 18 cientistas publicaram na famosa revista Science um estudo sobre “Os limites planetários: um guia para um desenvolvimento humano num mundo em mutação”. Elencaram 9 dados fundamentais para a continuidade da vida. Entre eles estavam o equilíbrio dos climas, a manutenção da biodiversidade, preservação da camada de ozônio, e controle da acidificação dos oceanos entre outras. Todos os itens encontram-se em estado de erosão. Mas dois são os mais degradados, que eles chamam de “limites fundamentais”: a mudança climática e a extinção das espécies. O rompimento destas duas fronteiras fundamentais pode levar a civilização ao colapso.

Cuidar da Terra neste contexto significa que ao paradigma da conquista que devasta natureza devemos opor o paradigma do cuidado que preserva a natureza. Este cura as feridas passadas e evita as futuras. O cuidado nos leva a conviver amigavelmente com todos os demais seres e a respeitar os ritmos da natureza. Devemos, sim, produzir o que precisamos para viver, mas com cuidado e dentro dos limites suportáveis de cada região e com a riqueza de cada ecossistema. À Terra como baú de recursos devemos opor a compreensão atual da Terra como Grande Mãe e Gaia, super-organismo vivo.

A segunda ameaça consiste na máquina de morte das armas de destruição em massa: armas químicas, biológicas e nucleares. Elas já estão montadas e podem destruir toda a vida do planeta por 25 formas diferentes. Como a segurança nunca é total devemos cuidar para que não sejam usadas em guerras e que o mecanismos de segurança sejam cada vez mais severos.

À esse ameaça devemos opor uma cultura da paz, do respeito aos direitos da vida, da natureza e da Mãe Terra, a distensão e do diálogo entre os povos. Ao invés do ganha-perde, viver o ganha-ganha buscando convergências nas diversidades. Isso significa criar equilíbrio e gerar o cuidado.

A terceira ameaça é a falta de água potável. De toda água que existe na Terra apenas 3% é água doce, o resto é salgada. Destes 3%, 70% vão para a agricultura, 20% para a indústria e somente destes 0,7%, 10% vão para a dessetentação humana e animal É um volume irrisório o que explica que mais de um bilhão de pessoas vivem com insuficiência de água potável.

Cuidar da água da Terra é cuidar das florestas, pois são elas as protetoras naturais de todas as águas. Cuidar da água exige zelar para que as nascentes sejam cercadas de árvores e todos os rios tenham sua mata ciliar, pois são elas que alimentam as nascentes. Ocorre que mais da metade das florestas húmidas foram desmatadas, alterando os climas, secando rios ou diminuindo a água dos aquíferos. O que melhor podemos sempre fazer é reflorestar.

A quarta grande ameaça é representada pelo aquecimento crescente da Terra. Pertence à geofísica do planeta que ele conheça fases de frio e fases de calor que sempre se alternam. Ocorre que este ritmo natural foi alterado pela excessiva intervenção humana em todas as frentes da natureza e da Terra. O dióxido de carbono, o metano e outros gases do processo industrialista criaram uma nuvem que circunda toda a Terra e que retém o calor aqui em baixo. Estamos próximos a 2 graus Celsius. Com esta temperatura pode-se ainda administrar os ciclos da vida.

A COP21 de Paris do final de 2015 criou um consenso entre as 192 nações de fazer tudo para não chegar a dois graus Celsius tendendo a 1,5 o nível da sociedade pré-industrial. Se ultrapassar este a espécie humana estará perigosamente ameaçada.Pena que tais decisões não tenham valor legal mas sejam apenas voluntárias.

Não sem razão que os cientistas criaram uma nova palavra para qualificar nosso tempo: o antropoceno. Este configuraria uma nova era geológica, na qual o grande ameaçador da vida, o verdadeiro Satã da Terra, é o próprio ser humano em sua irresponsabilidade e falta de cuidado.

Outros aventam a hipótese segundo a qual a Mãe Terra não nos quereria mais vivendo em sua Casa. Arranjaria um modo de nos eliminar, seja por um desastre ecológico de proporções apocalípticas seja por alguma super-bactéria poderosíssima e inatacável, permitindo assim que as outras espécies não se sentissem mais ameaçadas por nós e possam continuar no processo da evolução.

Contra o aquecimento global devemos buscar fontes alternativas de energia, como a da biomassa, a solar e a eólica, pois a fóssil, o petróleo, o motor de nossa civilização industrial, produz, em grande parte, o dióxido de carbono. Devemos viver os vários êrres (r) da Carta da Terra: reduzir, reusar e reciclar, reflorestar, respeitar e rejeitar todo o apelo ao consumo. Tudo o que possa poluir o ar deve ser evitado, para impedir o aquecimento global.

Se não começarmos com mudanças substanciais o futuro comum Terra-Humanidade corre risco. Vivemos tempos de urgência e de irreversibilidade. A Terra nunca mais será como antes. Temos que cuidar para que as transformações que lhe temos introduzido sejam benéficas para a vida e não o seu holocausto.

Leonardo Boff é colunista do JB on line e escreveu Os direitos do corção. Paulus 2016.


Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

domingo, 6 de março de 2016

Para que serve a hostilização ao PT?

''A igreja já seduziu o povo para este comportamento, os nazistas já fizeram isto e hoje fazem isto com o PT.''

Nota-se uma crescente e contínua campanha de hostilização ao Partido dos Trabalhadores e também de seus militantes e simpatizantes. Sendo que agora passaram a atacar um símbolo desta organização, o presidente Lula. Mas qual razão desta hostilização? Alguns responderão que isto está sendo orquestrado pela grande mídia e por organizações políticas de oposição. De fato existem indícios. Mas o que quero refletir aqui é sobre o porquê de tão grande adesão a esta forma de linchamento público de um grupo e mesmo de uma pessoa que é um símbolo deste grupo e que extrapola a esfera de relações dentro desta organização. 


Acredito que o fermento de tudo isto está na ignorância coletiva que uma parte significativa do povo brasileiro tem sobre história e a memória deste país e deles mesmos. Penso que os grandes veículos de comunicação através suas operações psico-informativas desconstruíram e reconstruíram a memória política e social deste país e deste povo, ao menos de uma grande parcela. Penso que para pessoas ignorantes quanto aos assuntos sociais e políticos, ter algo como bruxas, judeus, terroristas e outros que conspiram trazendo o mal, sempre foi algo bem aceito. Porquê ? 

Simples, era mais fácil para alguém na época das “bruxas” considerá-las como um objeto a ser hostilizado, como depositárias do mal, do que aceitar os conflitos nas suas relações sociais primárias pessoais e secundárias impessoais. Se persigo o mal , se combato o mal, posso acreditar que sou o bem e faço o bem. Esta coisa não passa de uma catarse coletiva, terapia coletiva, em que de forma neurótica as pessoas depositam todos os males do mundo nas costas de um grupo social, deixando de enxergar tudo aquilo de ruim que elas mesmas fazem para os outros e para si mesmas. Alguém deve ser o cordeiro imolado para que a ordem divina retorne. 

A psicologia chama isto de mecanismo de projeção neurótica. A igreja já seduziu o povo para este comportamento, os nazistas já fizeram isto e hoje fazem isto com o PT. Peguem suas tochas, queimem grupos e pessoas e esqueçam a desgraça de suas vidas de seus empregos, de seus casamentos, esqueçam os impostos que sonegam, a puxada de tapete no colega, as intrigas e insatisfações em suas famílias, os coitos repetitivos e esqueçam mais do que tudo a desgraça das suas ignorâncias. Buda já afirmava: " O mal não existe, o que existe é a ignorância".

Narendranath Martins Costa - Professor de História - Graduado pela Universidade Federal de Santa Maria/RS

Fonte: https://www.facebook.com/narendranath.costa

quinta-feira, 3 de março de 2016

PRAGMATISMO ANTIÉTICO DO MERCADO

''A ética existe apenas enquanto discurso para iludir os ingênuos, assim como os “selos verdes” que emolduram a propaganda das grandes empresas devastadoras do meio ambiente.''


Foto: Frei Betto
Nas páginas iniciais do primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, o tema da ética sobressai: no centro do Jardim do Éden havia uma árvore do bem e do mal. A árvore é o símbolo óbvio de que toda a organização da vida humana deve ser planejada em torno de princípios éticos.

Nascemos para a liberdade. Se somos livres, temos sempre diante dos olhos um leque de opções. Podemos optar pela opressão ou pela libertação; pela mentira ou pela verdade; pela competitividade ou pela solidariedade.

Cada uma de nossas opções, tanto pessoais quanto sociais, se funda em uma raiz ética ou antiética. Pois, como acentua Santo Tomás de Aquino, estamos todos, sem exceção, em busca do bem maior, mesmo quando praticamos o mal. E o bem maior é a felicidade.

A ética exige, porém, uma resposta de cada um de nós: busco a minha felicidade, ainda que obtida mediante a infelicidade alheia, ou busco a felicidade de todos, ainda que a minha felicidade seja coroada pelo sacrifício da própria vida?

Sabemos que no mundo capitalista, globocolonizado, o desenvolvimento, como bem analisou Marx, sempre significou maior acumulação de riquezas em mãos privadas. Nunca foi realizado em função das reais necessidades da maioria da população. Abrem-se ruas asfaltadas e iluminadas em loteamentos de terrenos vazios, destinados a condomínios de luxo, enquanto as ruas populosas das periferias das cidades não merecem nenhum tipo de calçamento e nelas proliferam valas infectadas de dejetos humanos.

Talvez o mais significativo exemplo da lógica perversa que rege o desenvolvimento capitalista seja o fato extraordinário de o ser humano, ao custo de US$ 6 bilhões, ter colocado os pés na face da lua. No entanto, ainda não logrou colocar nutrientes essenciais na barriga de milhões de crianças da América Latina, da África e da Ásia.

A razão instrumental da modernidade fracassou por ceder ao pragmatismo do mercado e se distanciar de valores como a ética. No capitalismo, qualquer sistema axiológico constitui um estorvo. A ética existe apenas enquanto discurso para iludir os ingênuos, assim como os “selos verdes” que emolduram a propaganda das grandes empresas devastadoras do meio ambiente.

É o caso da Companhia Vale, no Brasil, e a Samarco, a ela vinculada, que em novembro de 2015, devido ao rompimento de uma barragem, ocasionou o maior desastre ecológico da história do Brasil, envenenando o rio Doce, uma de nossas vias fluviais mais importantes e causando um prejuízo avaliado em, no mínimo, R$ 20 bilhões.

Desenvolvimento, no mundo capitalista, é antes um negócio que um programa de aprimoramento da qualidade de vida da população. Vide a especulação imobiliária. Enquanto 1/3 da população do Rio de Janeiro habita em favelas, ou seja, 2 milhões de pessoas, na orla marítima milhares de casas e apartamentos permanecem fechados quase todo o ano, e são abertos apenas quando as férias de seus proprietários coincidem com o período de verão.

No DNA do desenvolvimento capitalista há um vírus que parece imbatível: a corrupção. O Brasil se destaca hoje, infelizmente, como país onde a corrupção contaminou tanto o governo como nossas maiores empresas, como a Petrobras. Há que lembrar que o mesmo ocorre em inúmeros países. A diferença – meritória para o Brasil – é que os governos Lula e Dilma não moveram um dedo para impedir a Polícia Federal e o Ministério Público de denunciarem e investigarem corruptos e corruptores no poder público e na iniciativa privada, incluindo presidentes de grandes empreiteiras e ministros do governo do Partido dos Trabalhadores.

Toda a história do desenvolvimento brasileiro é marcada pelo casamento entre corrupção e impunidade. Felizmente a Justiça promove o divórcio, estabelece transparência e favorece prisões e punições, processo esse que, infelizmente, está longe de chegar ao fim.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Cristovam Buarque e Veríssimo, entre outros, de “O desafio ético” (Garamond).

quarta-feira, 2 de março de 2016

NA MINHA SALA DE AULA EU SOU A DEFESA DOS QUE QUEREM

''Eu simbiose professor e aluno sou o centro do interesse dos que querem apreender e não dos que se negam entender''

Na minha sala de aula aluno não faz o que quer... não usa celular, não fuma maconha, na tira a camisa, não joga baralho, não entra sem material escolar, não entra de biquini ou sunga, shortinho desfiado, minissaia, regata fitness e quinquilharias mais.

A sala de aula tem que ser terra sagrada, trincheira para soldados que sonham e dispostos a vencer, para mestres que ensinam e mestres que aprendem, replicam e aperfeiçoam o mestre. É lugar para revolucionar a dúvida e levantar colunas de certeza, prévias, frágeis flexíveis aos ajustes e aperfeiçoamento do tempo. Quem não esta disposto a permanecer ali não deve ser forçado, por isso convidados a ser retirar. 

A democracia não é só direito a escolha, mas também o dever de indicar o caminho aos que ainda não sabem, não querem ou relutam assimilar alimentando-se de suas contradições - por si mesmos ou por conveniência dos país e responsáveis.

Na minha sala de aula, país irresponsáveis, diretores incompetentes, gestor pedagógico de delinquente classe média ou revoltado inconsequente não tem poder de decisão, de imposição. 

Eu simbiose professor e aluno sou o centro do interesse dos que querem apreender e não dos que se negam entender e acham que é local de desfile de tipinho, Lan house de celulares, acadêmia para corpinhos definidos a exposição, passarela de moda, vale da fumacinha ou cheirinho, ante-sala do hedonismo e orgias de corpos cobertos de desejos e cabeças nuas de valores e limites.

Se querem é assim, não dependo de estar ali, dependo dos que querem estar ali e por esses eu renuncia o que necessário for e enfrento os desafios que muitos procuram correr. Na minha sala de aula eu sou a defesa dos que querem aprender e me ensinar.

Neuri A. Alves - Professor, Pesquisador e Assessor de Formação e Educação Popular 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

UMA CULTURA CUJO CENTRO É O CORAÇÃO

''A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração.''


Leonardo Boff
A nossa cultura, a partir do assim chamado século das luzes (1715-1789) aplicou de forma rigorosa a compreensão de René Descartes (1596-1650) de que o ser humano é “senhor e mestre” da natureza podendo dispor dela ao seu bel-prazer. Conferiu um valor absoluto à razão e ao espírito científico. O que não conseguir passar pelo crivo da razão, perde legitimidade. Daí se derivou uma severa crítica a todas as tradições, especialmente à fé cristã tradicional.

Com isso se fecharam muitas janelas do espírito que permitem também um conhecimento sem necessariamente passar pelos cânones racionais. Já Pascal notara esse reducionismo falando nos seusPensées da logique du coeur ( “o coração tem razões que a razão desconhece”) e do esprit de finesse que se distingue do esprit de géométrie, vale dizer, da razão calculatória e instrumental analítica.

O que mais foi marginalizado e até difamado foi o coração, órgão da sensibilidade e do universo das emoções, sob o pretexto de que ele atrapalharia “as ideias claras e distintas” (Descartes) do olhar científico. Assim surgiu um saber sem coração, mas funcional ao projeto da modernidade que era e continua sendo o de fazer do saber um poder e um poder como forma de dominação da natureza, dos povos e das culturas. Essa foi a metafísica (a compreensão da realidade) subjacente a todo o colonialismo, ao escravagismo e eventualmente à destruição dos diferentes, como das ricas culturas dos povos originários da América Latina (lembremos Bartolomé de las Casas com sua História da destruição das Índias) e também do capitalismo selvagem e predador.

Curiosamente a epistemologia moderna que incorpora a mecânica quântica, a nova antropologia, a filosofia fenomenológica e a psicologia analítica tem mostrado que todo conhecimento vem impregnado das emoções do sujeito e que sujeito e objeto estão indissoluvelmente vinculados, às vezes por interesses escusos (J. Habermas).

Foi a partir de tais constatações e com a experiência desapiedada das guerras modernas que se pensou no resgate do coração. Finalmente é nele que reside o amor, a simpatia, a compaixão, o sentido de respeito, base da dignidade humana e dos direitos inalienáveis. Michel Maffesoli na França, David Goleman nos USA, Adela Cortina na Espanha, Muniz Sodré no Brasil e tantos outros pelo mundo afora se empenharam no resgate da inteligência emocional ou da razão sensível ou cordial. Pessoalmente estimo que, face à crise generalizada de nosso estilo de vida e de nossa relação para com a Terra, sem a razão cordial não nos moveremos para salvaguardar a vitalidade da Mãe Terra e garantir o futuro de nossa civilização.

Isso que nos parece novo e uma conquista – os direitos do coração – era o eixo da grandiosa cultura maya na América Central, particularmente na Guatemala. Como não passaram pela circuncisão da razão moderna, guardam fielmente suas tradições que vêm pelas avós e pelos avôs, ao largo das gerações. O escrito maior o Popol Vuh e os livros de Chilam Balam de Chumayel testemunham essa sabedoria.

Participei mais vezes de celebrações mayas com os seus sacerdotes e sacerdotisas. É sempre ao redor do fogo. Começam invocando o coração dos ventos, das montanhas, das águas, das árvores e dos ancestrais. Fazem suas invocações no meio de um incenso nativo perfumado e produtor de muita fumaça.

Ouvindo-os falar das energias da natureza e do universo, parecia-me que sua cosmovisão era muito afim, guardadas as diferenças de linguagem, da física quântica. Tudo para eles é energia e movimento entre a formação e a desintegração (nós diríamos a dialética do caos-cosmos) que conferem dinamismo ao universo. Eram exímios matemáticos e haviam inventado o número zero. Seus cálculos do curso das estrela se aproximam em muito ao que nós com os modernos telescópios alcançamos.

Belamente dizem que tudo o que existe nasceu do encontro amoroso de dois corações, do coração do Céu e do coração da Terra. Esta, a Terra, é Pacha Mama, um ser vivo que sente, intui, vibra e inspira os seres humanos. Estes são os “filhos ilustres, os indagadores e buscadores da existência”, afirmações que nos lembram Martin Heidegger.

A essência do ser humano é o coração que deve ser cuidado para ser afável, compreensivo e amoroso. Toda a educação que se prolonga ao largo da vida é cultivar a dimensão do coração. Os Irmãos de La Salle mantém na capital Guatemala uma imenso colégio –Prodessa – onde jovens mayas vivem na forma de internato, onde se recupera, bilíngue, e sistematiza a cosmovisão maya, ao mesmo tempo em que assimilam e combinam saberes ancestrais com os modernos especialmente ligados à agricultura e a relações respeitosas para com a natureza.

Apraz-me concluir com um texto que uma mulher sábia maya me repassou no final de um encontro só com indígenas mayas em meados de fevereiro.”Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração jamais se equivocará” (Popol Vuh).

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com