sábado, 30 de janeiro de 2016

Antoine de Saint-Exupéry, a vida do espírito e a ética da Terra

''...esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas.''


Se é verdade que os transtornos climáticos são antropogênicos, quer dizer, possuem sua gênese nos comportamentos irresponsáveis dos seres humanos (menos dos pobres e muito mais das grandes corporações industriais), então fica claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas e boas.


Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “ Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”(n.53).

Esse outro rumo implica, urgentemente, uma ética regeneradora da Terra. Esta ética deve ser fundada em alguns princípios universais, compreensíveis e praticáveis por todos. É o cuidado essencial, que é uma relação amorosa para com a natureza; é o respeito por cada ser porque possui um valor em si mesmo; é a responsabilidade compartida por todos pelo futuro comum da Terra e da humanidade; é a solidariedade universal pela qual nos entreajudamos; e, por fim, é a compaixão pela qual fazemos nossas as dores dos outros e da própria natureza.
Esta ética da Terra deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada afim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos presenteou durante todos os tempos de nossa existência sobre este planeta.

Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Esta lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum.

O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, Carta ao General “X” afirma com grande ênfase: ”Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano”(Macondo Libri 2015, p. 31).

Num outro texto, escrito em 1936, quando era correspondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso da um sentido à vida”. 

Aí retoma o tema da vida do espírito. Para isso, afirma, “precisamos nos entender reciprocamente; o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Temos sede, num mundo feito deserto, sede de encontrar companheiros com os quais condividimos o pão” (Macondo Libri 2015, p.20). E termina a Carta ao General “X”: ”Temos tanta necessidade de um Deus”(op.cit. 36).

Efetivamente, só a vida do espírito satisfaz plenamente o ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência.

Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje um verdadeiro culto celebrado em tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, de como equilibrar nossas pulsões, os anjos e demônios que nos habitam para levarmos uma vida com relativo equilíbrio.

Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, desenraizados e sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apeticida.

Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ameque é a vida do espírito. Ela nos convoca para o alto e para ações salvadoras e regeneradoras da Mãe Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra, Vozes 1999.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Ampliar densidade de polinizadores aumenta produção agrícola

Estudo comprova que o maior número de polinizadores em pequenas propriedades melhora rendimento de culturas.

Promover a biodiversidade pode ser um caminho sustentável para ampliar a oferta de alimentos no mundo, principalmente a produção vinda de pequenos agricultores. Um estudo publicado neste mês na revista Science comprova que a diferença de produtividade entre pequenas áreas agrícolas com baixa e alta produção poderia ser melhorada 24%, em média, somente com o aumento do número de visitantes florais (polinizadores). Em grandes propriedades, para a melhora ocorrer, deve-se diversificar também as espécies desses visitantes. O estudo contou com a participação de pesquisadores do Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) em Biodiversidade e Computação (BioComp), sediado na USP.

Os polinizadores são os “responsáveis” por levar o pólen de uma flor para a outra para que ocorra a fecundação da planta. Eles podem ser de variados tipos, desde animais até mesmo o vento. No entanto, a maioria e os mais frequentes são os insetos, principalmente as abelhas.

Os pesquisadores do NAP BioComp organizaram o banco de dados resultante da coleta de informações nas propriedades rurais. Foram analisados 344 campos de 33 diferentes sistemas de produção de culturas dependentes de polinizadores em pequenas e grandes propriedades na Ásia, África e América Latina. Essas culturas englobam algodão, canola, caju, maçã, melão, tomate, café, manga, pepino, nabo, framboesa, girassol, cardamomo, entre outros.

“Algumas espécies de plantas necessitam da presença do polinizador para que o fruto e a semente sejam formados. Se você não tiver o polinizador, a planta não gera o fruto ou o gera, mas com uma eficiência muito menor, então, essas plantas são chamadas de dependentes de polinizador”, explica Antonio Saraiva, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, coordenador do NAP BioCamp e um dos autores do estudo.

Por isso, a quantidade de visitas do polinizador à planta reflete na produtividade. No estudo, os pesquisadores identificaram a relação entre o aumento da produção nas pequenas propriedades agrícolas (aquelas com até 2 hectares) por causa da densidade de visitantes. Para as áreas maiores, apenas a quantidade de visitantes florais não aumentou a produtividade, mas sim a diversificação das espécies visitantes.

“Quando temos propriedades maiores, é comum a presença de polinizadores com longo alcance de voo que, em geral, não são específicos de uma planta. Esses polinizadores podem visitar várias plantas numa área maior. Por isso, para aumentar os visitantes florais em grandes áreas, é preciso diversificar as espécies para provocar o aumento da visitação na mesma planta”, informa o professor.


► SEGURANÇA ALIMENTAR

O estudo alerta que muitos sistemas de produção agrícola têm negligenciado a importância do polinizador. “Há um estímulo para práticas de manejo da produção relacionadas principalmente ao solo, mas praticamente se esquece da importância da polinização. E a pesquisa comprova que, somente com o aumento dos polinizadores, temos um incremento de 24% na produção das pequenas propriedades”, destaca Saraiva.

A produtividade dos pequenos agricultores tem um impacto direto na questão da segurança alimentar. A pesquisa publicada na Science indica que há mais de 2 bilhões de pessoas em países em desenvolvimento dependentes da produção de alimentos vindas das pequenas propriedades.

O professor Saraiva lembra ainda para os cuidados com a preservação dos polinizadores, que em sua maioria são as abelhas. Estudos apontam para a relação entre o desaparecimento delas e o uso indiscriminado de agrotóxicos.

“Como os polinizadores estão sendo ameaçados, é preciso rever essa tendência, sugestões para isso seriam plantios de faixas com plantas com flores para que os polinizadores possam se alimentar em épocas em que a cultura em si não tem flor; uso mais adequado dos pesticidas em períodos quando há menos polinizadores; restaurar áreas naturais nas redondezas das culturas porque elas servem de abrigo e alimento para os polinizadores quando as culturas não estão com flores.”


► ESTUDO

O artigo Mutually beneficial pollinator diversity and crop yield outcomes in small and large farms publicado na Science é resultado de um trabalho desenvolvido por pesquisadores de 18 países, com base em dados de culturas de 12 nações (Argentina, Brasil, Colômbia, África do Sul, Gana, Quênia, China, Índia, Indonésia, Nepal, Paquistão e Noruega).

O ponto de partida foi um projeto de pesquisa desenvolvido entre 2010 e 2014. Chamado de “Conservação e Manejo de Polinizadores para Agricultura Sustentável através de uma Abordagem Ecossistêmica”, ele contou com financiamento do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (Global Environment Facility – GEF) e foi executado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). A proposta foi estudar a polinização em culturas de cada um dos 12 países.

No Brasil, o projeto teve como ponto focal o Ministério do Meio Ambiente e teve a participação de diversas instituições de pesquisa. No site Polinizadores do Brasil, há mais informações sobre a participação brasileira.

Hérika Dias / Agência USP de Notícias


Fonte:http://www5.usp.br/103792

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

COMO SEMPRE, A APARÊNCIA DOS PROBLEMAS.

''A queda da taxa de juros ainda é um sonho distante enquanto a inflação não chegar ao centro da meta.''

Prof. Elias Jabbour
Estão apostando em uma rodada de aumento da taxa básica SELIC. A funcionalidade deste instrumento no combate à inflação é tema de discussão. O que é bom, evidente. A questão, como sempre aqui no Brasil, é que insistimos em nos contentar com a aparência do fenômeno – ainda mais se essa aparência for motivo de análise por parte de algum “grande intelectual”. Não se percebe que nos atuais marcos da estratégia consagrada na década de 1990 — os dois preços básicos da economia devem combinar ou se revezar ao objetivo mater — a estabilidade monetária, não ao desenvolvimento.

A taxa de câmbio no atual patamar é ótima à recuperação de espaços da nossa indústria, reverte déficits em nossas contas correntes. Por outro lado, num país onde a indústria foi solapada, a inflação é inevitável. Nos acostumamos a importar de tudo, inclusive o preço do crescimento expandido pelo consumo foi mais desindustrialização com a taxa de câmbio chegando no final de 2010 tendo um dólar valendo em torno de R$ 1,50. Ou seja, em nenhum momento a estratégia estabilizatória foi abandonada. E sim, fortalecida e transformada em política oficial de Estado.

Com exceção do ano de 2012 onde se exacerbou outro vício brasileiro: tomar a solução dos problemas partindo de pressupostos teóricos errados, fruto da fusão entre a visão de mundo das duas principais correntes do pensamento econômico brasileiro – monetaristas e estruturalistas: (“a inflação é de demanda”; “a oferta de bens agrícolas é inelástica”; “O problema é a taxa de juros”; “o problema é o câmbio”; “o problema é a desigualdade”; “o Brasil é um atraso”; “tudo é estagnação”). Sem falar da máxima socialdemocrata que se repete como uma quintessência: “crescimento e desenvolvimento não são a mesma coisa”. No fundo quase todos creem na “estabilidade monetária” como algo essencial, uma conquista!

O que fica desta combinação entre altas taxas de juros e câmbio desvalorizado? Fenômeno quase novo. Creio que significa a junção entre maior competitividade industrial, porém com um sistema nacional de financiamento da produção no rumo de um colapso iminente. Nossas empresas continuarão a se financiar em moeda estrangeira, jogando peso considerável contra a nossa soberania. A queda da taxa de juros ainda é um sonho distante enquanto a inflação não chegar ao centro da meta. E deverá chegar tamanha a violência sobre a demanda em curso.

Ao menos um espaço fiscal no horizonte capaz de reordenar os investimentos sociais ao mesmo nível de 2014. As frestas políticas existem e observo duas, já expostas em artigo anterior: o saco cheio dos nossos amigos da ABIMAQ e as possibilidades abertas pelo Novo Banco de Desenvolvimento. Bons princípios ao acúmulo de forças. Não suficiente, se as premissas que norteiam nosso país não mudarem. Refiro-me ao debate de ideias.

Grande política não se faz com grandes ideias. Grandes ideias não surgem sem criatividade. Ambas as coisas estão completamente ausentes do debate econômico brasileiro. Debate este que nunca esteve num nível tão baixo e assustador. Parece que estamos sempre em busca de algum “grande intelectual” falar algo com sentido para daí desafogarmos nossa ânsia por alguma verdade que nos conforte. A questão da taxa de câmbio como a atual deus ex machina do debate é o maior exemplo disso, independente de se deixar de lado a taxa de juros e – independente, também – da análise compartilhada, aquela não toma o desenvolvimento como expressão da combinação virtuosa entre os aludidos dois preços básicos da economia. Lembro-me que uns anos atrás falava-se da taxa de juros e esquecia-se o câmbio. E assim caminhamos.

No alto da insignificância de um professor universitário continuarei a afirmar que a estabilidade monetária não é pressuposto para nada, que o problema não é macroeconômico e sim de institucionalidades, que mesmo com juros em patamares internacionais o crescimento dificilmente virá (fruto dessas institucionalidades criadas na década de 1990), que nosso país está condenado a ajustes fiscais e reformas da previdência cíclicas. Um dia, quando tudo for tentado, quem sabe aparecerá algum grande intelectual progressista para colocar o debate em seus devidos termos sem precisar pagar o “dinheiro de caronte”, assinando recibo das “conquistas” pós-Plano Real. Só não vale falar que os preços dos alimentos — e sua alta – é fruto da relação entre oferta e demanda e da seca que assola grandes regiões produtoras (o ano de 2015 fechou com safra recorde de grãos: 209,5 milhões de toneladas…). E o preço dos produtos da cesta básica não para de subir.

Elias Jabbour, Professor, Doutor de Economia na UERJ. Um dos grandes estudiosos sobre Economia e Mercado Chinês.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

PESQUISADORA DENUNCIA FARSA NA CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL





'' Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.''


Em tese de doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência Social no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa.

ENTREVISTA - DENISE GENTIL

A crise forjada da Previdência

Por Coryntho Baldez

Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.

O superávit da Seguridade Social - que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência - foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira - condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" (leia a tese na íntegra).

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.

Jornal da UFRJ: A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?

Denise Gentil: A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.

Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.


Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.

Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?

Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.

O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.

Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).

Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.

Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.

Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.


LEIA TAMBÉM: Desafio de 2016: Preservar as conquistas previdenciárias


Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?

Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.

É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.

Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.

Jornal da UFRJ: E são recursos que retornampara a economia?

Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.

Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?


Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficouconhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.

Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?

Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.

Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?

Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social", no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?

Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?


Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.

Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?

Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.

Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?

Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.

Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.

Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.

Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?

Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.

Publicado no Jornal da UFRJ

Fonte / Reprodução: http://www.adunicentro.org.br

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O IDEOLOGO DO AGRONEGÓCIO E O GENOCÍDIO


"Felizes sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque é grande a vossa recompensa nos céus. Pois foi deste modo que perseguiram os profetas que vieram antes de vós." (Mateus 5, 11-12).

O texto assinado por Denis Lerrer Rosenfield no Globo em 16 de novembro de 2015 ataca o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), cuja credibilidade é atestada nos seus mais de 40 anos de ação missionária em defesa dos direitos indígenas. Nossa atuação é fundamentada no Evangelho de Jesus Cristo e na premissa de que é preciso promover a vida e a dignidade, em especial daqueles que têm sido excluídos e desrespeitados. Esta opção teológica em favor dos povos indígenas contraria quem defende que tudo deve se dobrar à lógica do mercado.

Rosenfield contesta as informações divulgadas pelo Cimi sobre os assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul. Esclarecemos que as informações veiculadas em nossos relatórios anuais provêm de fontes oficiais, de notícias da imprensa e dos povos indígenas com os quais atuamos. Estes dados, vistos no seu conjunto, permitem afirmar que se trata, sim, de genocídio, entendimento compartilhado pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e pela Anistia Internacional. E, nesse sentido, em boa hora, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul criou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Genocídio, investigação que poderá demonstrar as precárias condições de vida a que estão submetidos os povos indígenas daquele estado.

Em Mato Grosso do Sul, 390 indígenas foram assassinados (2003 a 2014) e 707 cometeram suicídio (2000 a 2014), conforme dados do Ministério da Saúde. A situação de confinamento em terras ínfimas, a prolongada permanência em acampamentos em beira de rodovias, a falta de perspectivas e a violência e a discriminação cotidianas estão entre os fatores que levam ao incremento dos suicídios e assassinatos entre os indígenas. A questão fundiária está, portanto, na raiz desta grave realidade.

Os dados sobre violências contra os indígenas em Mato Grosso do Sul estão estampados cotidianamente nos jornais, são denunciados pelo Ministério Público Federal, por lideranças indígenas e pelos movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior. A situação é tão grave que, por vezes, o governo federal intervém diretamente, a exemplo do que ocorreu em agosto de 2015, quando a Polícia Federal e o Exército foram enviados ao município de Antônio João para evitar que fazendeiros agissem cruelmente contra os Guarani e Kaiowá da terra Cerro Marangatu, onde o indígena Semião Vilhalva foi assassinado.

Outro argumento utilizado por quem defende uma ideologia desenvolvimentista é o de que o Cimi estaria a serviço de interesses internacionais. Recomendamos uma leitura atenta dos artigos 20 e 231 da Constituição federal, que conceituam as terras indígenas como sendo bens da União, destinadas ao usufruto exclusivo dos índios. A demarcação é um modo de assegurar que essas terras não estejam disponíveis à ganância exploratória internacional. Não se pode afirmar o mesmo de áreas de latifúndio voltadas à exportação ou de empreendimentos agropecuários e minerários vinculados a empresas multinacionais.

Rosenfield defende que o marco temporal da Constituição de 1988 seria uma linha divisória na demarcação das terras indígenas. No entender do Cimi, não há como compactuar com manobras jurídicas ou políticas que restrinjam direitos, e é absurda a interpretação de que a data de promulgação de nossa Lei Maior anule direitos fundamentais que a antecedem. Se isso ocorresse, se conflagraria um estado de insegurança jurídica sem precedentes.

Reiteramos nosso compromisso com os povos indígenas pela defesa da vida e de seus direitos constitucionais. Nossa inspiração missionária vem das palavras de Jesus Cristo: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em plenitude" (João, 10, 10).


Artigo do presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, originalmente publicado no jornal O Globo do dia 08/12/2015.


Fonte: http://www.cimi.org.br/