domingo, 27 de setembro de 2015

Qual destino para o Brasil: recolonização ou projeto próprio?

''O propósito dos países centrais que dispõem de várias formas de poder, especialmente, a militar de recolonizar toda a América Latina.''

Há uma indagação que se faz no Brasil mas também no exterior que se expressa por esta pergunta: qual o destino da sétima economia mundial e qual o futuro de sua incomensurável riqueza de bens naturais?

Analistas dos cenários mundiais do talante de Noam Chomsky ou de Jacques Attali nos advertem: a potência imperial norte-americana segue esse motto, elaborado nos salões dos estrategistas do Pentâgono:”um só mundo e um só império”. Não se toleram países, em qualquer parte do planeta, que possam pôr em xeque seus interesses globais e sua hegemonia universal. Curiosamente, o Papa Francisco em sua encíclicla “sobre o cuidado da Casa Comum”, como que revidando o Pentágono propõe:”um só mundo e um só projeto coletivo”.

No Brasil esse debate se dá principalmente no campo da macroeconomia: o Brasil se alinhará às estratégias político-sociais-economico-ideológicas impostas pelo Império e com isso terá vantagens significativas em todos os campos, mas aceitando ser sócio menor e agregado (opção dos neoliberais e dos conservadores) ou o Brasil procurará um caminho próprio, consciente de suas vantagens ecológicas, do peso de seu mercado interno com uma população de mais de duzentos milhões de pessoas e da criatividade de seu povo. Aprende a resistir às pressões que vêm de cima, a lidar inteligentemente com as tensões, a praticar uma política do ganha-ganha (o que supõe fazer conceções) e assim a manter o caminho aberto para um projeto nacional próprio que contará para o devenir da nossa e da futura civilização (opção do PT, das esquerdas e dos movimentos sociais).

Isso deve ficar claro: há um propósito dos países centrais que dispõem de várias formas de poder, especialmente, a militar (podem matar a todos) de recolonizar toda a América Latina para ser um reserva de bens e serviços naturais (água potável, milhões de hectares férteis, grãos de todo tipo, imensa biodiversidade, grandes florestas úmidas, reservas minerais incomensuráveis etc). Ela deve servir principalmente os países ricos, já que em seus territórios quase se esgotaram tais “bondades da natureza” como dizem os povos originários. E vão precisar delas para manterem seu nível de vida.

Estimamos que dentro de um futuro não muito distante, a economia mundial será de base ecológica. Finalmente não nos alimentamos de computadores e de máquinas, mas de água, de grãos e de tudo o que a vida humana e a comunidade de vida demandam. Daí a importância de manter a América Latina, especialmente, o Brasil no estágio o mais natural possível, não favorecendo a industrialização nem algum valor agregado a suas commodities.

Seu lugar deve ser aquele que foi pensado desde o início da colonização: o de ser uma grande empresa colonial que sustenta o projeto dos povos opulentos do Norte para continurem sua dominação que vem desde o século XVI quando se iniciaram as grandes navegações de conquista de territórios pelo mundo afora. Analiticamente, esse processo foi denunciado por Caio Prado Jr, por Darcy Ribeiro e, ultimamente, com grande força teórica, por Luiz Gonzaga de Souza Lima com seu livro ainda não devidamente acolhido A refundação do Brasil: rumo à sociedade biocentrada (RiMa, São Bernardo 2011).

Em razão desta estratégia global, as políticas ambientais dominantes reduzem o sentido da biodiversidade e da natureza a um valor econômico. A tão propalada “economia verdade” serve a este propósito econômico e menos à preservação e ao resgate de áreas devastadas. Mesmo quando isso ocorre, se destina à macroeconomia de acumulação e não à busca de um outro tipo de relação para com a natureza.

O que cabe constatar é o fato de que o Brasil não está só. As experiências recentes dos movimentos populares socioambientais se recusam a assumir simplesmente a dominação da razão econômica, instrumental e utilitarista que tudo uniformiza. Por todas as partes estão irrompendo outras modalidades de habitar a Casa Comum a partir de identidades culturais diferentes. Os conhecimentos tradicionais, oprimidos e marginalizados pelo pensamento único técnico-científico, estão ganhando força na medida em que mostram que podemos nos relacionar com a natureza e cuidar da Mãe Terra de uma forma mais benevolente e cuidadosa. Exemplo disso é o “bien vivier y convivir” dos andinos, paradigma de um modo de produção de vida em harmonia com o Todo, com os seres humanos entre si e com a natureza circundante.

Aqui funciona a racionalidade cordial e sensível que enriquece e, ao mesmo tempo, impõe limites à voracidade da fria razão instrumenal-analítica que, deixada em seu livre curso, pode pôr em risco nosso projeto civilizatório. Trata-se de uma nova compreensão do mundo e da missão do ser humano dentro dele, como seu guardador e cuidador. Oxalá este seja o caminho a ser trilhado pela humanidade e pelo Brasil.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/

sábado, 26 de setembro de 2015

Frei Betto encontra Fidel Castro

Para azar dos meus inimigos, continuo vivo’, diz Fidel a Frei Betto

Em visita de uma hora e meia, escritor brasileiro constata que, embora mais magro, ex-presidente cubano, de 88 anos e desde janeiro de 2014 sem aparecer em público, está muito lúcido, desmentindo os rumores sobre sua morte. Fidel Castro se mostrou otimista.
O escritor Frei Betto esteve com Fidel e, em entrevista a SANDRA COHEN, disse que o ex-líder cubano está bem de saúde, lúcido e elogiou Obama e o Papa. O escritor Frei Betto desembarcou semana passada em Havana, empolgado com as primeiras negociações entre representantes dos governos de Cuba e EUA e também apreensivo com rumores de que a saúde do ex-presidente Fidel Castro, de 88 anos e que não é visto em público desde janeiro de 2014, havia se deteriorado.
Anteontem à tarde, no entanto, após uma visita que durou uma hora e meia, saiu aliviado da casa de Fidel: encontrou-o bem mais magro, em relação à ultima vez em que se viram em fevereiro passado, mas “absolutamente lúcido”, como relatou ao GLOBO. Acompanhados o tempo inteiro por Dalia, mulher do ex-presidente, os dois conversaram sobre a reaproximação com os EUA, boatos de sua morte e até física quântica.
Em Havana, para o Congresso Mundial de Pedagogia e palestras, Frei Betto, que é colunista do GLOBO, ouviu elogios de Fidel ao presidente americano, Barack Obama, e ao Papa Francisco. A visita ganhou destaque ontem na imprensa cubana. “O encontro aconteceu em um clima afetuoso, característico das amplas e fraternais relações existentes entre Fidel e Betto”, noticiou o “Granma”, o jornal oficial, em sua edição on-line. Fidel só não quis tirar foto: “As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem”, alegou ao amigo.

Como se deu o encontro com Fidel Castro? 

Frei Betto: Toda vez que venho a Cuba, Fidel me convida à sua casa, estive com ele em fevereiro passado. Ontem (27/01/2015) ele mandou me buscar no hotel e fiquei lá durante uma hora e meia. Há muito tempo ele não aparece em público. E no dia 3, morreu o Fidel Castro Odinga, filho de Raila Odinga ex-premier do Quênia, gerando também rumores de que ele havia morrido. Comentei com ele sobre essa coincidência. Fidel riu e disse que já morreu várias vezes, e acrescentou: “Para azar dos meus inimigos, continuo vivo.”
Ele está muito bem e bem mais magro. A cabeça está perfeita. Fidel é muito detalhista, anota tudo. Quis saber onde estou hospedado, o que eu fiz, com quem falei, e sempre anotando. Ele é o homem do detalhe. Me perguntou sobre o Papa Francisco, com quem estive em abril do ano passado, e quis um relato detalhado do encontro. Disse que tinha lido meu livro “A obra do artista, uma visão holística do Universo” (José Olympio), que foi traduzido em Cuba. E mostrou-se entusiasmado. Fidel gosta muito de cosmologia e física quântica, e o livro aborda isso. Conversou sobre as hipóteses de universos paralelos. Estava muito empolgado com o assunto e me pediu mais bibliografia sobre essa linha. Eu me comprometi a buscar mais livros sobre a evolução do Universo, e de física quântica para ele.
Comentei sobre a carta que ele mandou para a Federação dos Estudantes Universitários, em que aborda o reatamento das relações com os Estados Unidos. Eu disse que o diálogo é importante, é o encontro do caminhão consumista com o Lada (marca de veículos russos) da austeridade. Por enquanto, vai ser muito difícil a sintonia, porque um fala em FM e outro em AM. Ele concordou.
O que mais ele disse sobre o movimento de aproximação entre Cuba e EUA?

Frei Betto: Ele acha fundamental, mas disse que não pode perder de vista que os EUA ainda continuam com o objetivo de colonizar Cuba. Por outro lado, avaliou que primeiro é preciso acabar com o bloqueio econômico e tirar o país da lista dos países terroristas, que os EUA demonstrem medidas concretas de boa vontade. Ele está muito feliz com o prestígio que Obama está tendo nessa segunda gestão, e com o fato de o Congresso americano estar com baixa popularidade.
Ele se mostrou entusiasmado com Obama?

Frei Betto: Exatamente. Ele é um entusiasta do Obama e acha muito positivo o que o presidente americano vem fazendo. Mas, ao mesmo tempo, diz que o processo é muito longo. Os EUA tomaram uma série de medidas contra Cuba, que precisam ser canceladas.
Ele mencionou alguma dificuldade nessas primeiras negociações ocorridas semana passada em Havana?
Frei Betto: Não, mas se disse muito otimista. E ressaltou: “Mesmo sendo inimigos, nós temos que dialogar”. Mas sempre observando que é um longo caminho.
Vocês conversaram sobre as mudanças internas em Cuba?

Frei Betto: Não. Abordamos muito política a internacional. Falamos sobre o atentado na França e ele disse que gostou muito da reação do Papa Francisco. Concordou com Francisco e disse: “A liberdade de expressão tem limites. Você pode se expressar, mas não tem o direito de humilhar ou ofender”. Fidel elogiou a atitude do Papa, quando disse que, se xingassem sua mãe, devolveria com um murro.
E quais foram suas outras impressões sobre o estado de saúde de Fidel?

Frei Betto: Ele estava tão bem que eu lhe propus tirar uma foto. Ele não quis, mas brincou: “As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem”. Eu acredito que ele não quis porque não havia fotógrafo oficial e a foto teria que ser improvisada por alguém. Mas me autorizou a divulgar o teor da nossa conversa. Foi um alívio para mim tê-lo encontrado tão bem. Muitos amigos daqui diziam que há muito tempo não tinham notícias dele, e especulavam que poderia ter piorado, estar doente ou no hospital. Quando os prisioneiros cubanos regressaram ao país, esperava-se que aparecessem em fotos com Fidel, e isso não aconteceu. Disseram-me que eles se encontraram com Fidel, mas em privado. 
Minha interpretação para isso é de que Cuba está tendo uma atitude muito respeitosa diante do reconhecimento de Obama de que o bloqueio não funcionou. Eles não querem tripudiar em cima disso. Estão tratando esse assunto com muito respeito. Interessa para Cuba o fim do bloqueio, interessa o reatamento com os EUA. A previsão é de que virão três milhões de americanos por ano para o país. E a preocupação é que não haja infraestrutura para absorver tanta gente.
Fidel estava andando?

Frei Betto: Desde que cheguei, ele permaneceu o tempo inteiro sentado à mesa de trabalho, vestido com traje esportivo, e sempre fazendo anotações. Está bem magro, mas absolutamente lúcido. Durante a conversa, fomos acompanhados pela Dalia, sua mulher.
Como o senhor acha que os cubanos estão encarando o degelo nas relações com os EUA?

Frei Betto: Os cubanos, em geral, estão otimistas e ao mesmo tempo apreensivos. Sabem que será um grande choque cultural. Às vezes eu pergunto se estão preparados para a tsunami e recebo de volto uma pergunta: será que estamos preparados? A questão agora é saber como os valores da Revolução serão preservados.
Quais as mudanças que o senhor notou em Cuba em relação à sua última viagem, no ano passado?

Frei Betto: Noto que Cuba vive um momento de euforia, o prestígio de Raul é impressionante. Ouvi várias vezes frases do tipo: “A nossa sorte é que os dois estão vivos, pois sabem como conduzir esse momento”. O processo de abertura econômica é inicial, está começando. Mas sinto otimismo de que isso vai melhorar as condições de vida do país.

"A FUNÇÃO DA ESCOLA NÃO É INSTRUIR. É DESCOBRIR"

Aluno e parceiro de Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende: o educador precisa se reinventar constantemente.


Aluno e parceiro do mestre em pedagogia Paulo Freire, o professor Moacir Gadotti defende a ideia de que o educador precisa se reinventar constantemente. Referência em educação, Gadotti faz uma análise atual da escola no país e diz que não há uma idade certa para se aprender. Na próxima quarta-feira, dia 23, ele participa como conferencista do 13º Congresso Internacional de Tecnologia na Educação, que acontece até sexta-feira, no Centro de Convenções de Pernambuco. Na conferência, ele falará sobre Educar para um outro mundo possível. O Diario conversou com Gadotti, que adiantou detalhes da palestra e também comentou sobre analfabetismo e a formação de educadores. Fez ainda uma reflexão sobre o papel do professor para fazer com que os alunos se sintam cada vez mais envolvidos no processo de aprendizagem. “Temos que nos reinventar diante de múltiplas metamorfoses provocadas pelo advento das novas tecnologias da informação e do mundo digital”, resume o educador, que lecionou da pré-escola a pós graduação em 46 anos de magistério.

O senhor diz que a escola precisa ser reencantada, encontrar motivos para que o aluno vá para os bancos escolares com satisfação, alegria. Como fazer isso, em lugares onde a realidade é bem complicada com problemas estruturais graves, como por exemplo, a falta de material escolar?

O grande educador pernambucano Paulo Freire nos ensinou que aprender é gostoso, mas exige esforço. Por isso, o papel da escola é despertar o desejo de aprender. O professor precisa saber muitas coisas para ensinar. Mas, o mais importante não é o que é preciso saber para ensinar, mas, como devemos ser para ensinar. O aluno quer saber, mas nem sempre quer aprender o que lhes é ensinado. O aluno precisa ser autor, ser rebelde, criador. A função da escola não é instruir. É descobrir. A escola do futuro será ousada, corajosa, formando para a autonomia, para o sonho e para a liberdade. A escola precisa, para ser eficaz, perguntar-se mais, despertar novas perguntas e não oferecer respostas para perguntas que ninguém fez. Se não temos perguntas que nos desafiem, não acharemos o caminho, não aprenderemos a superar as dificuldades da realidade desafiadora do presente.

Educar é também aproximar o ser humano do que a humanidade produziu. Se isso era importante no passado, hoje é ainda mais decisivo numa sociedade baseada no conhecimento e na tecnologia. Então como o professor deve agir?

Todos temos o direito de nos apropriar do que a humanidade já conquistou. As novas tecnologias estão nestas conquistas. Hoje é difícil imaginar que já vivemos sem Internet e sem celular. Se nos tirarem isso, hoje, certamente nosso mundo entraria em colapso. Com a rapidez com que ocorrem as mudanças, é difícil imaginar o que vem por aí. Devemos estar abertos a profundas mudanças. Nesse contexto, o papel do professor está mudando de lecionador para organizador da aprendizagem. Torna-se fundamental aprender a pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, aprender a trabalhar colaborativamente, saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, saber articular o conhecimento científico com o saber sensível, o saber técnico e o saber popular.

O ofício de professor corre risco de extinção?

Não. Muito pelo contrário. Mas, sim, um certo professor desaparecerá: o professor lecionador, como disse antes. Porque o professor, hoje, deve ser um problematizador do futuro e não um facilitador do presente, um repassador de conteúdos. Aprender não é ter acesso a computadores, a uma informação. Aprender é contextualizar a informação, atribuir-lhe sentido, construir conhecimento. O professor não é um aplicador de textos, um repassador de informações, um “facilitador”. É muito mais um “problematizador”. Facilitador é o computador. O que distingue um professor é a autoria. O multiplicador apenas replica o que aprendeu. Um computador pode fazer melhor isso do que um ser humano. O papel do professor não é repetir mecanicamente dados, informações e processos. É produzir conhecimento e reinventar a realidade.

Então como o professor pode fazer para evitar que seja um mero executor do currículo oficial?

Essa é uma pergunta complicada porque vivemos numa época em que os governos, nas suas três esferas, vêm perdendo a hegemonia do projeto educacional. Empresas e fundações privadas estão impondo políticas de educação instrucionistas a governos que não têm projetos pedagógicos. Não discutem valores, projeto de democracia, não formam para a cidadania mas apenas para o mercado. Sistemas educacionais privados transformaram os professores das redes públicas em máquinas de ensinar, meros executores de tarefas previamente apostiladas. Devemos reagir a essa mercantilização da educação. Esses sistemas desvalorizam o professor, a professora. Os professores estão excluídos de toda discussão do tema da qualidade. Eles não têm voz. O que se busca é uma estandardização da qualidade, da avaliação, da aprendizagem.

Qual a diferença do professor de hoje e daquele professor do passado?

Ser professor hoje, no século 21, não é nem mais difícil nem mais fácil do que era no século passado. É diferente. Diante da velocidade com que a informação obsolesce e morre, seu papel está mudando: ele não só transforma a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também forma pessoas. Ele faz fluir o saber, porque constrói sentido para a vida das pessoas e para a humanidade. Por isso, ele continuará imprescindível. Seu papel continua sendo “ensinar”, no seu sentido etimológico, do latim “insignare”, que significa “marcar com um sinal”, indicar um caminho, um sentido. Ser professor é, essencialmente, ser profissional do sentido.

Por que o senhor diz que não há tempo próprio para aprender?

Não foram poucas as iniciativas governamentais nos últimos 60 anos, que tentaram eliminar o analfabetismo no Brasil. Apesar disso, continuamos com milhões de jovens, adultos e idosos que não sabem ler e escrever um bilhete simples. E aí se introduz o conceito de “alfabetização na idade certa” como se existisse uma idade apropriada para aprender. Para mim, isso foi um grande equívoco, gerando preconceito contra os que não conseguirem se alfabetizar nesta idade. Cria-se o mito de que existe uma idade certa para aprender, contrariando tudo o que a Unesco defende: uma aprendizagem ao longo de toda a vida.

Apesar dos avanços registrados, ainda convivemos com atrasos como o analfabetismo. O que o senhor aconselha para superarmos esse grande desafio?

Sabemos que, entre nós, o direito à educação não é garantido para todos e todas. Apenas um em cada quatro brasileiros, acima de 15 anos, tem domínio completo da leitura e da escrita. Mas, felizmente, esse desafio foi equacionado pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A saída está em executá-lo. A garantia desse direito depende muito, hoje, da mobilização em favor do cumprimento das metas 9 e 10 do PNE. Vivemos uma democracia na qual muitas promessas são feitas e não cumpridas. A Constituição de 1988 garantia que o analfabetismo seria eliminado em 10 anos. O PNE 2001-2011 fez a mesma promessa que não foi cumprida. O PNE 2014-2024 retoma essa meta. Resta saber agora se novo PNE é para valer. Depende de nós.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

UMA OUTRA FORMA DE RESOLVER OS CONFLITOS

''Chegará o dia em que os seres humanos assumirão a inteligência cordial e espiritual, teremos inaugurado o reino da paz e da concórdia. O lobo seguirá lobo mas não ameaçará mais ninguém.''

A humanidade, especialmente, sob o patriarcado, conheceu conflitos de toda ordem. A forma predominante de resolvê-los foi e é a utilização da violência, para dobrar o outro e enquadrá-lo numa determinada ordem. Esse é o pior dos caminhos, pois deixa nos vencidos um rastro de amargura, humilhação e de vontade de vingança. Estes sentimentos suscitam uma espiral da violência que hoje ganha especialmente a forma de terrorismo, expressão da vingança dos humilhados. Será esta o única forma de os seres humanos resolverem suas contendas?

Houve alguém que se considerava “um louco de Deus”(pazzus Dei), Francisco de Assis que poderia ser também o atual Francisco de Roma que perseguiu outro caminho. O anterior era o de ganha-perde. Este último, o ganha-ganha, esvaziando as bases para o espírito belicoso. Tomemos exemplos da prática de Francisco de Assis. Sua saudação usual era desejar a todos: “paz e bem”. Pedia aos seguidores:”Todo aquele que se aproximar, seja amigo ou inimigo, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade”(Regra não bulada,7).

Consideremos a estratégia de Francisco face à violência. Tomemos duas legendas, que, como legendas, guardam o espírito melhor que a letra dos fatos: os ladrões do Borgo San Sepolcro e o lobo de Gubbio (Fioretti, c. 21).

Um bando de ladrões se escondiam nos bosques e saqueavam a redondeza e os transeuntes. Movidos pela fome foram ao eremitério dos frades para pedir comida. São atendidos mas não sem remorsos destes: ”Não é justo que demos esmola à esta casta de ladrões que tanto mal faz neste mundo”. Apresentam a questão a Francisco. Este sugeriu a seguinte estratégia: levar ao bosque pão e vinho e gritar-lhes:”Irmãos ladrões, vinde cá; somos irmãos e lhes trouxemos pão e vinho. Felizes, comem e bebem. Em seguida falem-lhe de Deus; mas não lhes peçam que abandonem a vida que levam porque seria pedir demais; apenas peçam que ao assaltar, não façam mal às pessoas. Numa outra vez, aconselha Francisco, levem coisa melhor: queijo e ovos. Mais felizes ainda os ladrões se refestelam. Mas ouvem a exortação dos frades: “larguem esta vida de fome e sofrimento; deixem de roubar; convertam-se ao trabalho que o bom Deus vai providenciar o necessário para o corpo e para a alma”. Os ladrões, comovidos por tanta bondade, deixam aquela vida e alguns até se fizeram frades.

Aqui se renuncia ao dedo em riste acusando e condenando em nome da aproximação calorosa e da confiança na energia escondida neles de ser outra coisa que ladrões. Supera-se todo maniqueísmo que distribui a bondade de um lado e a maldade do outro. Na verdade, em cada um se esconde um possível ladrão e um possível frade. Com terno afeto se pode resgatar o frade escondido dentro do ladrão. E ocorreu.

Claramente aparece esta estratégia da renúncia da violência na legenda do lobo de Gubbio que atacava a população da pequena cidade. Supera-se de novo a esquematização: de um lado o “lobo grandíssimo, terrível e feroz” e do outro o povo bom, cheio de medo e armado. Dois atores se enfrentam cuja única relação é a violência e a destruição mútua. A estratégia de Francisco não é buscar uma trégua ou um equilíbrio de forças sob a égide do medo. Nem toma partido de um lado ou de outro, num falso farisaísmo: “mau é o outro, não eu, e por isso deve ser destruído”. 'Ninguém se pergunta se dentro de cada um não pode se esconder um lobo mau e e ao mesmo tempo um bom cidadão?'

O caminho de Francisco é desocultar esta união dos opostos e aproximar a ambos para que possam fazer um pacto de paz. Vai ao lobo e lhe diz:  ”irmão lobo, és homicida péssimo e mereces a forca; mas também reconheço que é pela fome que fazes tanto mal. Vamos fazer um pacto: a população vai te alimentar e tu deixarás de ameaçá-la”. Em seguida se dirige à população e lhes prega:”voltem-se para Deus, deixem de pecar.

Garantam alimento suficiente ao lobo e assim Deus os livrará dos castigos eternos e do lobo mau”. Diz a legenda que a cidadezinha mudou de hábitos, decidiu alimentar o lobo e este passeava entre todos, como se fosse um manso cidadão.

Houve intérpretes que leram essa legenda como uma metáfora da luta de classes. Pode ser. O fato é que a paz conseguida não foi a vitória de um dos lados, mas a superação dos lados e dos partidos. Cada um cedeu, verificou-se o ganha-ganha e irrompeu a paz que não existe em si, mas que é fruto de uma construção coletiva entre os cidadãos e o lobo.

Conclusão: Francisco não acirrou as contradições nem remexeu a dimensão sombria onde se acoitam os ódios. Confiou na capacidade humanizadora da bondade, do diálogo e da mutua confiança. Não foi um ingênuo. Sabia que vivemos na “regio dissimilitudinis”, no mundo das desigualdades (Fioretti c. 37). Mas não se resignou a está situação decadente. Intuía que para além da amargura, vigora no fundo de cada criatura uma bondade ignorada a ser resgatada. E o foi.

Chegará o dia em que os seres humanos assumirão a inteligência cordial e espiritual, cuja base biológica, os novos neurólogos identificaram e que completa a razão intelectual que divide e atomiza. Então teremos inaugurado o reino da paz e da concórdia. O lobo seguirá lobo mas não ameaçará mais ninguém.

Leonardo Boff escreveu Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 2000.

Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

EDUCAÇÃO: NOVO MODELO PEDAGÓGICO PARA UM NOVO TEMPO

Escolas jesuítas da Catalunha apostam na renovação do modelo pedagógico para se adaptar aos novos tempos. Experiências espanholas mostram como pensam os jesuítas do século 21.

''O modelo escolhido para substituir o antigo foi o das escolas democráticas, onde os alunos estão no centro de um aprendizado ativo.''

Espaços aconchegantes e motivadores: a mudança no ambiente
esteve entre as principais medidas adotadas.
Repensar a escola não é um desafio qualquer. Pelo contrário, requer daqueles que o propõem uma postura flexível, autocrítica e aberta às possibilidades de entender a educação a partir de diferentes pontos de vista. Imbuídos desse espírito, diretores da Fundação Jesuítas Educação da Catalunha, na Espanha, lideraram nos últimos anos um processo de reformulação do modelo pedagógico até então adotado. O que motivou a iniciativa foi o reconhecimento da defasagem do sistema, incompatível com as novas maneiras de ter acesso ao conhecimento e de transmiti-lo, com as novas necessidades profissionais e com a complexidade da realidade atual. Adaptar as escolas não seria suficiente; era preciso transformá-las.

O modelo escolhido para substituir o antigo foi o das escolas democráticas, onde os alunos estão no centro de um aprendizado ativo. De saída, a Fundação iniciou em 2009 um processo participativo chamado Horizonte 2020 (em catalão, Horitzó 2020) com o objetivo de propor debates sobre como deveria ser a escola ideal para enfrentar os desafios do século 21. Mais de 13 mil pessoas relacionadas direta ou indiretamente à rede de escolas jesuítas foram convidadas a participar, entre elas alunos, pais, professores, diretores, gestores, empresários, funcionários de instituições, políticos e membros da Igreja. Nas atividades propostas, o grupo foi incitado a refletir sobre três questões fundamentais: que escola queremos? Que futuro desejamos? Como deve ser a escola em 2020?

Em um primeiro momento, os participantes foram orientados a pensar exclusivamente no futuro que desejavam, deixando de lado o "como" fazê-lo. A ênfase estava em explorar o sonho e a imaginação de cada um dos envolvidos para que pudessem surgir ideias sem limitações. De acordo com a Fundação, o objetivo era que, ao final desse processo, fosse construído coletivamente um Ratio Studiorum (veja texto ao lado) do século 21: um conjunto de orientações que, baseadas nos princípios e valores da pedagogia inaciana (inspirada na experiência de Santo Inácio de Loyola, 1491-1556, fundador da Companhia de Jesus), além dos conhecimentos da pedagogia, da psicologia e da neurociência, servisse de orientação para educar as crianças e jovens.

Ao todo, foram apresentadas 56 mil ideias. Dessas, 17 propostas foram selecionadas para servir de base para a formulação do modelo sincrético que começou a ser implementado no ano passado. De setembro de 2014 a junho de 2015, cinco das oito escolas que integram a Fundação adotaram parcialmente as novas bases. As etapas escolhidas para iniciar esse processo foram a educação infantil e um período concreto da educação fundamental: a transição da educação primária à secundária no sistema educativo espanhol.

A eleição dessas etapas não foi ocasional. No caso da etapa infantil, a Fundação considerou fundamental incidir nesse período para construir as bases para o desenvolvimento das inteligências múltiplas, necessárias para transformar informações em conhecimento. Já no caso do ensino fundamental, haviam diagnosticado uma perda de estímulo e interesse entre os alunos de 9 a 12 anos devido à desconexão entre a realidade e o modelo pedagógico aplicado nas escolas.

Mudanças
A aplicação do projeto Horizonte 2020 na educação infantil resultou, na prática, na implementação do Modelo Pedagógico da Etapa Infantil (Mopi), baseado em onze pilares: equipe docente integrada, criativa e inovadora; alunos protagonistas; espaços flexíveis e dinâmicos; participação das famílias; recursos digitais; tempo flexível; avaliação dinâmica; metodologia diversa; estimulação precoce das inteligências; contato com o inglês e integração de valores. De todos os pontos, o de maior destaque foi a necessidade de substituir os espaços antigos por outros, mais acolhedores e motivadores, com a intenção de desenvolver projetos globais e diversos para a estimulação das inteligências múltiplas.

Já na transição dos 9 aos 12 anos, o resultado foi a criação da Nova Etapa Intermediária (NEI). Em vez de estudar por matérias - com exceção de matemática, música e educação física -, os alunos passaram a realizar projetos transversais e coletivos trabalhados semanalmente a partir de materiais elaborados pelos professores; só há livros nas aulas de inglês e francês. Os alunos passaram a ser agrupados em turmas de 60 (e não mais de 30) e a contar com o apoio de três tutores de disciplinas diferentes. Os espaços também foram alterados: ficaram mais amplos, luminosos e coloridos.

O uso do tempo foi igualmente reformulado. Sem horários fixos, os alunos passaram a desenvolver as atividades debatidas no início da manhã, com avaliação ao final da jornada. O recreio tampouco ficou com um horário estabelecido: os estudantes passaram a decidir quando sair, de acordo com o momento em que consideravam necessário. Os deveres de casa também não existem mais, pelo menos da forma habitual. Os alunos passaram a ser estimulados a pesquisar temas relacionados aos projetos que trabalham em sala.

Impactos da primeira experiência

A direção do Horizonte 2020, ciente de que as mudanças nos processos educativos são lentas, optou por fazer uma avaliação do projeto somente ao final do segundo ano de implementação. No entanto, a observação do cotidiano das escolas revelou alguns resultados interessantes. De acordo com o diretor-geral adjunto da Fundação, Josep Menéndez, houve quatro mudanças fundamentais. 

A primeira delas se refere à retomada da conexão dos alunos com o aprendizado. Segundo ele, quase sempre chegava um momento da escolarização em que os alunos perdiam o interesse. "Agora eles estão permanentemente conectados. Houve uma mudança de atitude. Eles estão alegres e entusiasmados, o que acaba
Reforma educacional procurou motivar e inserir os alunos no
centro do processo educacional
contagiando os pais também", relata.

A segunda foi o ajuste de foco para o processo de aprendizagem, e não para o resultado. O terceiro impacto, mesmo não estando entre os objetivos iniciais do processo, foi o aumento, por parte dos alunos, da consciência e da capacidade de explicar o que fazem na escola. "Como a intenção não é vincular o aprendizado à realização de provas, eles estão mais relaxados e atentos ao que fazem e agora têm a capacidade de explicar como e por que realizam determinadas atividades", explica.

Por último, houve uma evolução significativa no comportamento dos alunos mais tímidos ou daqueles que apresentavam problemas diagnosticados de atenção. Como o trabalho em projetos atribui responsabilidades para cada aluno, eles passaram a participar mais.

Além desses resultados, Josep Menéndez fez questão de destacar que a transformação mais radical foi a mudança cultural dos professores, que tiveram de redefinir o próprio papel na escola e no ensino. Mais importante que dominar técnicas específicas, agora eles têm de aprender a trabalhar em grupo, a confiar no trabalho do outro e a acompanhar alunos de outras matérias. "Eles estão cansados, mas muito satisfeitos e confiantes. Aprenderam a trabalhar em equipe e a controlar o próprio estresse em relação ao conteúdo e às aulas. Além disso, percebem que estão participando de uma mudança importante, então se sentem vitoriosos", explica.

Quanto à opinião das famílias sobre o projeto, Fernando Manzano, pai de uma aluna de 10 anos, relatou sua experiência: "A mudança de atitude da minha filha foi evidente. Às vezes era difícil levá-la para a escola; ela se entediava e não explicava nada do que fazia. A partir da NEI, ficou com mais vontade de ir à aula e passou a demonstrar isso em casa, explicando constantemente o que estava fazendo, como aprendia, do que mais gostava e como trabalhava com os companheiros, apesar da diferença entre eles", contou.

Ao avaliar o novo sistema de ensino, Fernando destaca como uma das mudanças mais relevantes o estabelecimento de trabalhos em equipe. "Ao trabalhar com projetos e em grupos, os alunos adquirem responsabilidade na hora de trabalhar, porque sabem que não podem decepcionar os demais. Isso é motivador. Um dia, tive quase de obrigar minha filha a ficar em casa. Ela estava com 39°C de febre e queria ir de todas as maneiras para a escola para entregar a parte dela de um trabalho feito em grupo. Acabei fazendo isso por ela", conta.

O segundo aspecto mais importante em sua opinião foi a conscientização dos estudantes. "Como fazem uma reflexão no início e no final da jornada, eles não ficam um dia sequer sem pensar no porquê das coisas. Este aspecto de maturidade foi muito importante." Perguntado sobre a preferência entre o modelo anterior e o atual, Fernando não hesitou: "Sem dúvida nenhuma, o modelo atual. Ele fortalece a personalidade de cada aluno e desenvolve o aspecto humano", finaliza.

► Vozes dissonantes

Mas nem todas as opiniões são totalmente favoráveis ao projeto. Apesar de reconhecer a importância da iniciativa, o psicólogo e educador Jaume Funes acredita que existe um conservadorismo ideológico que não permite à FJE inovar verdadeiramente em termos de valores. "O Horizonte 2020 não considera a equidade de oportunidades ou a diversidade como valores. Falam em desenvolver as capacidades das crianças, mas não em melhorar as oportunidades de acesso, com impacto nos bairros onde estão localizados. Inovar com mais impacto social significa adaptar as oportunidades às diferenças e às desigualdades dos alunos", argumenta.

Outros criticam ainda o excesso de repercussão do projeto frente às diversas práticas inovadoras já desenvolvidas em outras escolas. O pedagogo e jornalista Jaume Carbonell afirma que as ações que vêm sendo discutidas e realizadas não constituem nenhuma grande novidade. Em seu livro Pedagogias do século XXI (de 2015 e ainda não publicado no Brasil), o autor destaca projetos inovadores desenvolvidos em diversas instituições de ensino. A pouca atenção dada a eles se deve ao fato de que a maioria das escolas enfrenta problemas estruturais e de autonomia, o que acaba restringindo o desejo de transformação a algumas práticas pontuais.

Sobre os próximos passos do trabalho da Fundação, a intenção é incluir mais três escolas ainda este ano e somá-las às outras cinco já participantes. Ao final do segundo ano, espera-se criar um modelo da etapa infantil e intermediária que possa ser aplicado futuramente em todas as escolas da rede. A previsão é que, em 2020, todas as etapas educativas já tenham começado a mudança.


► Ratio Studiorum 

Ordenamento elaborado em 1599 para orientar a atividade dos educadores jesuítas, delimitando suas funções e o modo de realizá-las. Tinha como princípios pedagógicos:

■ Autoridade: a autoridade do educador vem de Deus e deve provocar um temor filial e um amor confiante;

■ Adaptação: as regras devem se adaptar à realidade de cada escola e de cada grupo de alunos;

■ Atividade: os alunos devem participar ativamente de todas as atividades propostas, como recitar, ler, perguntar e responder.

■ Motivação: concebe a existência de elementos motivadores (interesse, entusiasmo, emulação, certame e honra) para conferir um ritmo ordenado e adequado às atividades.



► Alguns desejos das crianças 

"Queremos salas com cores divertidas."

"Silêncio para trabalhar e brincar tranquilos."

"Uma professora bem feliz, dando beijos e abraços."

"Sair para brincar na chuva com botas de borracha."

"Que a sala tenha mesas redondas, iPads e um botão para abrir a porta."

"Ter armário para guardar nossas coisas."

"Um quadro digital para muitas crianças tocarem ao mesmo tempo."

"Uma cama elástica no pátio e um gatinho em cada sala."

Mais informações sobre o projeto em: http://h2020.fje.edu

PROFESSORES E O DESAFIO DE EXPERIMENTAR NOVOS MÉTODOS

Desafio é conseguir que os professores experimentem novos modos de trabalhar. Práticas envolvendo o lúdico, a interdisciplinaridade e a contextualização têm o potencial de melhorar a aprendizagem.

"Professora, hoje não vai ter aula? É só brincadeira?" Perguntas como estas passaram a ser feitas por alunos e pais desde o ano passado para professoras alfabetizadoras de Costa Rica (MS). Isso acontece graças às formações do Pnaic.

No pequeno município, que tem seis escolas na rede e 1.400 alunos de 1º a 3º ano, a adesão dos docentes ao Pacto foi de 100%, mas a mudança de postura frente à sala de aula ainda está em processo, conta Mara Silvia Barbosa, coordenadora do Pnaic na cidade. "Aceitar participar da formação foi tranquilo, mas a mudança de atitude por parte do professor levou cerca de um ano para começar", afirmou. "No começo, essas perguntas incomodavam as professoras."

Segundo Mara, as formações levaram os docentes a sair da zona de conforto, passar do papel de "dono da verdade" para mediador do aprendizado. "Leva um tempo para o convencimento de que aquela "bagunça" pode ser boa, de que com a brincadeira não se está perdendo tempo, mas ganhando", disse. Para ela, contudo, mesmo que esse processo seja uma mudança ainda em curso, as crianças que estão hoje no primeiro ciclo do fundamental encontram uma alfabetização mais "humana" e adequada à idade do que os alunos que estavam na mesma série antes do Pacto.

Para Carolina dos Santos Vera e Silva, professora desde 2002 no município de Frei Miguelinho (PE), as formações foram boas para ela aprender a sistematizar o conhecimento do aluno e ter um olhar individual para cada um. "Sinto que eu ensinava, mas ficava sem amarrar. E, como a turma não é homogênea, tem níveis de conhecimento diferentes, preciso passar atividades diferentes. Não se pode dar uma aula única para todos, cada aluno tem sua necessidade", afirmou.

As práticas de Carolina também passaram a ser mais interdisciplinares e contextualizadas. Ela montou, por exemplo, uma sequência didática de culinária, em que foram abordados conteúdos de ciências (alimentação saudável), matemática (gráficos e tabelas) e língua portuguesa (gênero textual: receita). A experiência foi tão produtiva que acabou integrando um livro de relatos da Universidade Federal de Pernambuco.

Práticas envolvendo o lúdico, a interdisciplinaridade e a contextualização não são exclusividade, porém, dos professores que participam do Pnaic. Professora há 20 anos, Clara Elena Jorquera trabalha atualmente na rede particular, no Colégio Ítaca, em São Paulo, e aproveita as vantagens de contar com uma escola bem equipada e com uma equipe que atua de forma integrada. "Gosto de chamar o professor de artes, de educação física, de música, para fazer um trabalho em conjunto. A gente parte da história de um livro e faz atividades em todas as áreas. Assim as crianças ficam muito envolvidas, dá resultado melhor do que algo fragmentado", relata.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Zygmunt Bauman: "Há uma crise de atenção"

''Uma das tarefas da educação é conferir a todas as pessoas que tenham talento a possibilidade de adquirir conhecimento para que isso acabe tendo um uso criativo para a sociedade.''
Uma busca no Google com os termos “modernidade líquida" rende 187 mil resultados em 0,34 segundo. São, todos eles, “fragmentos de conhecimento", na visão do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que discursou neste sábado no evento Educação 360.

O pensador defendeu que os educadores precisam estimular determinadas características que ficam prejudicadas com a utilização da tecnologia, "paciência, atenção e a habilidade de ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento. É preciso trabalhar a capacidade de se manter focado." Leia mais abaixo:

— A educação é vítima da modernidade líquida, que é um conceito meu. O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de atenção, por exemplo. Concentrar-se e se dedicar por um longo tempo é uma questão muito importante. Somos cada vez menos capazes de fazer isso da forma correta — disse o pensador. — Isso se aplica aos jovens, em grande parte. Os professores reclamam porque eles não conseguem lidar com isso. Até mesmo um artigo que você peça para a próxima aula eles não conseguem ler. Buscam citações, passagens, pedaços.

Como o próprio Bauman mencionou, a modernidade líquida — definida nos resultados do Google como a época em que vivemos, caracterizada por “volatilidade" , “incerteza" e “insegurança" — norteou as obras do filósofo; ele escreveu cerca de 30 livros apenas em torno dessa maneira de enxergar a contemporaneidade.

— Não há como contestar que a internet nos trouxe grandes vantagens. A facilidade de acesso à informação, a facilidade com que podemos ignorar as distâncias... Lembro-me de que, quando era jovem, passava muito tempo na biblioteca tentando ler cem livros para encontrar um pedacinho de informação de que precisava. Agora, basta pedir para o Google. Em décimos de segundo ele dá milhares de respostas. Um problema foi eliminado: nós não precisamos passar horas na biblioteca. Mas há um novo problema. Como vou compreender essas milhares de respostas? — questionou Bauman, logo recorrendo à Grécia Antiga para para continuar. — Só agora, idoso, consegui entender Sócrates: “Só sei que nada sei".

Há ainda, na visão de Bauman, outras crises que chegam com a internet e precisam ser superadas. O filósofo defende que vivemos com cada vez menos paciência, pela quantidade de informação que recebemos ao mesmo tempo. E, quando não temos isso, o resultado é a irritação.

— Se demoramos mais de um minuto para acessar a internet quando ligamos o computador, ficamos furiosos. Um minuto só! Nosso limiar de paciência diminuiu. As informações mais bem-sucedidas, que têm mais probabilidade de serem consumidas, são apenas pedaços — diz o polonês. — Outra coisa é a persistência. Conseguir algo contém em si um número de fracassos que faz com que você perca tempo e tenha que recomeçar do zero. E isso é muito complicado. Não é fácil manter essa persistência nesse ambiente com tanto ruído e tantas informações que fluem ao mesmo tempo de todos os lados.

Todo esse novo cenário, explicou o pensador à plateia de educadores, desafia e transforma a posição secular do docente. Para Bauman, “não há como voltar à situação em que o professor é o único conhecedor, a única fonte, o único guia". E dá caminhos:

— Não há como conceber a sociedade do futuro sem tecnologia. Então, se não pode vencê-la, una-se a ela. Tente contrabalancear o impacto negativo, como a crise da atenção, da persistência e de paciência. É preciso ter determinadas qualidades se você deseja construir conhecimento e não só agregá-lo: paciência, atenção e a habilidade de ocupar esse local estável, sólido, no mundo que está em constante movimento. É preciso trabalhar a capacidade de se manter focado.

► Educação desigual

Hoje, de acordo com o filósofo, a educação reproduz privilégios em vez de aperfeiçoar a sociedade. Ele lembra que, nos EUA, 70% dos alunos na universidade vêm das classes mais altas, enquanto só 3% são das camadas de renda mais baixa. Segundo Bauman, essa é “uma forma de reafirmar a desigualdade social", tema do livro “A riqueza de poucos favorece a todos nós?", o mais recente lançamento (no mês passado) do escritor no Brasil.

— Uma das tarefas da educação é conferir a todas as pessoas que tenham talento a possibilidade de adquirir conhecimento para que isso acabe tendo um uso criativo para a sociedade. Mas esse objetivo não está sendo perseguido em muitos lugares. Na Grã-Bretanha, os preços, em vez de diminuírem para as pessoas com menos dinheiro, vão subindo. E cada vez menos pais têm a possibilidade de economizar a quantia necessária para seus filhos cursarem a universidade.

O problema, segundo Bauman, é que a educação está pressionada pela política e pelos interesses corporativos. E isso, explica ele, se reflete na mente do estudante. O polonês critica o fato de os alunos escolherem a área de estudos baseados “no fato de se vão conseguir emprego ou não".

— Se você quer conhecimentos especializados, que são as condições para um bom emprego, precisa estudar quatro ou cinco anos, e isso requer muito esforço. Mas, se você está sendo guiado pelo atual estado de coisas, tudo vai mudar nesse tempo de estudo. E você vai perceber que não vai conseguir encontrar um uso rentável para o tipo de qualificação e habilidade que adquiriu nesses anos de trabalho árduo na faculdade — argumenta.

Mesmo após toda essa lista de desafios, a mensagem que o dono de uma das mais influentes mentes no mundo deixou para o auditório na noite de ontem foi de pura esperança:

— Educar, senhoras e senhores, é fazer um investimento nos próximos cem anos.