quinta-feira, 11 de junho de 2015

JOVENS: NO LUGAR DA LOUSA A PRISÃO

Jovens em conflito com a lei relatam problemas ao voltar para o ambiente escolar, assim como o retorno dos mesmo é também um desafio para as escolas, que não sabem como lidar com esses alunos.


Christina Stephano de Queiroz

Ainda na escola, o adolescente G.I. envolveu-se com o tráfico de drogas, pois, segundo ele, necessitava de  dinheiro para ajudar a família a sobreviver. Flagrado pela polícia, ficou oito meses internado na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), onde concluiu o segundo ano do ensino médio. Após sair do período de internação e em cumprimento de medida de liberdade assistida, o jovem precisava voltar a estudar, solicitando retorno à escola que frequentava antes de entrar em conflito com a lei. Após ter a matrícula negada, encontrou vaga em outra escola, onde permaneceu por somente cinco dias, até receber ameaças de morte da polícia. Com isso, após buscar vagas durante cinco meses, G.I. conseguiu entrar em outra instituição, onde estuda há três semanas. Hoje com 18 anos recém-cumpridos, o adolescente garante que concluirá o ensino médio em 2015, mesmo diante das dificuldades que enfrenta no cotidiano letivo.

G.I. é um dos muitos adolescentes brasileiros que, após passarem um período cumprindo medida socioeducativa, tentam retornar à escola. Os dados de jovens que estão em escolarização em semiliberdade ou em medidas socioeducativas em meio aberto, porém, não são detectáveis no Censo Escolar da Educação Básica, uma vez que se referem a matrículas realizadas em escolas da rede pública que, conforme prescrição prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não identificam tais adolescentes.

No meio escolar, entretanto, a realidade é outra.  "Logo no meu primeiro dia de aula a diretora entrou na sala e contou a todos os presentes sobre minha situação. Com isso, até hoje, estou isolado da turma", diz G.I. O retorno ao ambiente escolar não é fácil nem para os adolescentes, nem para a escola. Entre as dificuldades estão a recusa, aberta ou velada, da matrícula, problemas no trato com os professores e dúvidas da gestão sobre como tratar com esses adolescentes.


Relação conflituosa

A Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem ato infracional. A lei estabelece o prazo de um ano aos órgãos responsáveis pelo sistema de educação pública e às entidades de atendimento para garantir a inserção de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa na rede pública de educação, em qualquer fase do período letivo, contemplando as diversas faixas etárias e níveis de instrução. O artigo 28 da mesma Lei responsabiliza gestores, operadores e seus prepostos e entidades governamentais "no caso do desrespeito, mesmo que parcial, ou do não cumprimento integral às diretrizes e determinações" previstas.

De acordo com Maria Lúcia de Lucena, coordenadora de programa social da Fundação Criança, de São Bernardo do Campo, muitas famílias encontram dificuldades para garantir a matrícula escolar dos jovens, ou devido à superlotação das salas de aula, ou por atitudes discriminatórias da equipe gestora, que os coloca em listas de espera. "O Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) tem constatado, no acompanhamento aos adolescentes em conflito com a lei, que suas experiências escolares são permeadas de mudanças de escolas, dificuldades de aprendizagem, conflitos com professores e colegas, expulsões, estigmatizações, rotulações e violações de direitos", diz Lúcia.

Conforme ela, esses aspectos levam ao baixo desempenho e, consequentemente, ao enfraquecimento do vínculo escolar, mediante o aumento do sentimento de perseguição e de exclusão por parte dos adolescentes, o que também decorre da frustração em relação à capacidade para aprender.

Na sua pesquisa de mestrado "O jovem autor de ato infracional e a educação escolar: significados, desafios e caminhos para a permanência na escola", Aline FávaroDias, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),  pesquisou casos de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto (benefício concedido a autores de atos infracionais contra o patrimônio, como roubo, furto e envolvimento com o tráfico de drogas). Psicóloga de formação, Aline, que sempre trabalhou com jovens infratores, diz que as características comuns a esses adolescentes são a dificuldade em lidar com regras, com a frustração e em estabelecer rotinas. O envolvimento com drogas também é frequente, afetando a capacidade de concentração.

São adolescentes, portanto, que já apresentam dificuldades com a rotina escolar, mesmo antes de serem flagrados em atos infracionais. Muitos deles já haviam se evadido da escola, antes da internação. Na pesquisa "Trajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei", realizada por Marina Rezende Vazon, professora do departamento de psicologia da USP em Ribeirão Preto, e outros especialistas, identificou-se que, em 2002, um total de 51% dos adolescentes com medida de internação estavam fora da escola no momento da apreensão e 6% não eram alfabetizados, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça.



Roberto passou 24 anos sob custódia. Hoje é livre-docente da USP
Em 2011, esses números aumentaram, respectivamente, para 57% e 8%. De acordo com o levantamento, os aspectos da vivência escolar mais fortemente associados à conduta infracional incluem o baixo desempenho, a relação conflituosa com pares e professores, e punições reiteradas e severas. Nessa linha, as trajetórias escolares são marcadas por processos explícitos ou implícitos de exclusão do ambiente escolar, nos quais se destacam a não aprendizagem, problemas disciplinares e punições recorrentes.

Marina lembra também que jovens em conflito com a lei costumam apresentar defasagem idade-série de, ao menos, três anos, mostrando que eles não realizaram aquisições mínimas de conhecimento. "Ao não conseguir o aprendizado cognitivo desejado, os jovens se desvinculam da instituição, tornando-se mais vulneráveis à ação policial", acredita Marina. "Estatisticamente, os problemas escolares influenciam mais os meninos de comportamento complicado do que as variáveis familiares", ressalta a pesquisadora.


Atenção especial

Quando participou de um assalto que lhe rendeu uma medida socioeducativa de oito meses de internação, D. já tinha se evadido da escola. Também internado durante oito meses, o jovem concluiu o primeiro ano do ensino médio e deixou a Fundação Casa no dia 16 de dezembro de 2014. Hoje com 17 anos e em medida de liberdade assistida, D. acaba de conseguir vaga em uma escola, após mais de cinco meses de espera. Ele considera que foi mais fácil aprender durante a internação do que nas escolas regulares pelas quais passou. "Na Fundação a pessoa mais respeitada é o professor, pois ele não somente dá aulas, mas também nos incentiva a viver", afirma.

O ECA determina que as unidades de internação têm o dever de promover a escolarização, educação profissional, atividades culturais, esportivas e de lazer. A medida socioeducativa pode ser cumprida em meio aberto ou com privação de liberdade. O jovem em cumprimento da medida de internação recebe formação dentro da unidade - seja ensino fundamental ou médio. Na internação, a responsável pela educação formal dos adolescentes é a Secretaria de Estado da Educação e os jovens recebem as mesmas propostas curriculares dos cursos de ensino fundamental e médio regulares da rede de ensino estadual. "Se estiver em cumprimento de semiliberdade, prestação de serviço à comunidade ou liberdade assistida, o aluno deve ser vinculado a uma escola próxima do seu cotidiano de vida", explica Maria Lúcia.
© Gustavo Morita
Maria Lúcia, da Fundação Criança: famílias relatam dificuldades para matricular seus filhos
De volta à escola regular, D. considera a "desmotivação docente" e "posturas autoritárias", como os principais entraves para que aprenda. Ele reclama da falta de atenção mais individualizada do professor no cotidiano das aulas, e de uma postura da escola com a qual não se sinta desrespeitado ou constrangido.

G.I. também compara suas duas experiências escolares, dentro e fora do período de internação. "Quando eu fiquei internado era obrigado a estudar. Era mais fácil aprender lá dentro do que aqui fora", compara. O adolescente relata dificuldades no trato com os professores, que - com exceção do docente que leciona artes - não se mostram abertos a ajudá-lo em suas dúvidas e problemas com o conteúdo das aulas, relata. Com seis pessoas vivendo em sua casa - todas desempregadas -  G.I. optou por estudar à noite para trabalhar de dia. A ideia, explica ele, é encontrar emprego o quanto antes. "Se eu esperar terminar a escola para começar a trabalhar, minha família morre de fome", afirma.

Em sua pesquisa, Aline Fávaro, da UFSCar, detectou entre as dificuldades reportadas pelos jovens entrevistados, problemas no trato com os professores como agressões físicas e verbais, insensibilidade às suas características individuais, comportamento autoritário, além da percepção de que as escolas gastam mais tempo com medidas punitivas do que para incentivar seu aprendizado.


Estereótipos

Ficar na escola, portanto, pode ser um desafio maior do que voltar para ela. Dados da Fundação Criança mostram que, no comparativo de 2010 a 2014, entre os adolescentes atendidos em meio aberto se observou um aumento progressivo no grau de escolaridade, porém a distorção idade-série aumentou. "Esse indicador da distorção é importante, pois mostra a fragilidade do sistema educativo quanto a sua capacidade de reter alunos", critica Maria Lúcia. Segundo ela, dos 851 adolescentes atendidos pela Fundação em 2014, somente três concluíram o ensino médio e dois entraram no ensino superior.

Biancha Angelucci, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) - que pesquisa a escolarização das pessoas que estão excluídas do sistema escolar, entre elas os moradores de rua, as pessoas com deficiências mentais e físicas e os adolescentes em conflito com a lei -, defende que, para garantir o retorno escolar desses jovens, o primeiro passo é evitar que o seu desenvolvimento seja condicionado pela situação de conflito com a lei. "A escola é o espaço onde o jovem tem uma oportunidade única de reconstruir sua identidade. Mas, para isso, os gestores devem ressaltar outras características desse estudante, ajudando-o a criar um novo projeto de vida." Para ela, pesam sobre esses jovens estereótipos generalizados, segundo os quais o conflito com a lei é algo inerente ao seu caráter e, portanto, não pode ser mudado.

Biancha argumenta que o acolhimento dos jovens em conflito com a lei deve estar previsto no projeto político-pedagógico da instituição, que precisa discutir com a comunidade o que significa receber esses adolescentes. "Muitas famílias [da comunidade escolar] se opõem à ideia, pois sentem um medo infundado de que os seus filhos sejam influenciados pelos jovens reinseridos. A escola deve trabalhar esses problemas", pondera.

O desafio do retorno à escola diz respeito, portanto, não somente à busca por vagas em locais dispostos a acolhê-los, como também a criar condições que permitam ganhar sua confiança, de maneira que ele escolha permanecer naquele contexto, mesmo após o cumprimento da medida socioeducativa. "Muitos desses meninos viveram um drama pessoal no decorrer do seu processo de aprendizagem e trazem para si a responsabilidade pelo seu fracasso escolar", argumenta Marina, da USP.


Para além da intervenção

E como é possível conquistar essa confiança? "Diretores e coordenadores pedagógicos precisam conhecer os desejos e necessidades desses adolescentes, criando vínculos com esses meninos e suas famílias, por meio de um trabalho em rede, já que nenhum equipamento conseguirá, sozinho, intervir de fato na vida desses garotos", defende Gabriela Gramkow, pesquisadora e doutora em psicologia social que trabalhou com adolescentes em cumprimento de medidas de semiliberdade.
© Gustavo Morita
Gabriela Gramkow: os gestores precisam criar vínculos com esses adolescentes
João Clemente de Souza Neto, coordenador de uma entidade sem fins lucrativos ligada à Pastoral do Menor na região episcopal da Lapa - que acompanha o cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto -, explica que, quando a ONG recebe um jovem, o primeiro passo é ajudá-lo a ter consciência da sua situação. Com base nesse processo, eles o apoiam a construir um projeto de vida, no qual a escola pode ou não entrar. "Muitos meninos apresentam dificuldades de convivência. Então, antes de garantir o retorno à escola, precisamos cuidar dessa parte social", detalha. Uma crítica de Neto ao sistema educacional é que as instituições separam a educação do mercado de trabalho, algo que, acredita, dificulta o interesse desses alunos que, em geral, precisam trabalhar.

Apesar do panorama complicado, no entanto, há situações bem-sucedidas de adolescentes que conseguiram retornar à normalidade pelo caminho da educação. Um desses casos é o de Tamara Souza Rodrigues, moradora de Niterói e hoje com 21 anos, que cursava o primeiro ano do ensino médio quando se envolveu em uma briga com outra adolescente, três dias antes de cumprir 18 anos. Internada durante nove meses, cursou o segundo ano do ensino médio, concluindo a Educação Básica logo após o término da medida de privação de liberdade, por meio de um supletivo. Seu bom desempenho escolar chamou a atenção dos gestores do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) do Rio de Janeiro, que acompanhavam o seu caso e a convidaram para trabalhar no projeto TV Degase, como funcionária. Tamara se prepara, agora, para prestar vestibular na área de direito, faculdade que pretende começar a cursar já no início de 2016.


A eficácia da educação

A importância da reinserção social de adolescentes que entraram em conflito com a lei pela via da educação também fica evidente na história de vida do professor Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da USP. Silva passou, ao todo, 24 anos sob custódia em instituições do Estado, entre elas a antiga Febem (atual Fundação Casa). Ao deixar a instituição, já maior de idade, foi condenado a 36 anos por crimes diversos. Passou, então, a estudar direito na prisão, conseguindo reduzir sua pena para um quinto do tempo previsto. Já em liberdade, graduou-se em pedagogia, fez mestrado e doutorado, desenvolvendo a tese "A eficácia sociopedagógica da pena de privação de liberdade", em 2001. Em 2009, obteve a livre-docência na USP, instituição em que, hoje, coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade. A finalidade do grupo é fomentar o desenvolvimento de políticas públicas para expansão da educação nas prisões e o aprimoramento das medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes.

Com toda essa bagagem, a principal crítica de Silva ao sistema de reinserção escolar desses jovens diz respeito aos procedimentos na triangulação Justiça-Secretaria de Educação-Escola, que não dialogam, de maneira que as instituições não sabem o conteúdo pedagógico que o jovem estava aprendendo antes e depois da internação. De acordo com ele, no tempo que o adolescente passa internado, se entende que ele é aluno da Fundação Casa, algo que considera equivocado. "A Fundação Casa deveria trabalhar de forma complementar ao que a escola já faz, e não pretender substituí-la no período que ele passa internado", defende. Com isso, ele argumenta que, após a privação da liberdade, o reatamento dos laços escolares deve ocorrer com a escola de origem do jovem e não com outra instituição.

Em um de seus trabalhos de pesquisa, Aline Fávaro Dias identificou que as escolas não possuem estrutura e capacitação para trabalhar com esses jovens. Assim, nas conversas com as equipes gestoras, escutou que elas sabiam que os adolescentes em conflito com a lei deveriam ser tratados da mesma forma que o restante da classe, porém era inevitável que eles fossem mais observados e, algumas vezes, tratados como perigosos.


Acordos cruéis

Silvia Helena Seixas - responsável por implantar a escola de Ensino Fundamental na Fundação Casa de Ribeirão Preto em 2000 e coordenadora do Instituto Plural Vila Bela, que trabalha com egressos de medidas socioeducativas - observa que essa falta de preparo tem feito as escolas enfrentarem os desafios na área por meio de acordos cruéis. Assim, algumas permitem, por exemplo, que esses jovens entrem com drogas nas aulas, desde que não se envolvam em brigas. Outras estabelecem acordos com a polícia, que passa a entrar na escola para dar broncas nos meninos com problemas de comportamento. O terceiro tipo de acordo - que ela considera o mais cruel - é quando o gestor se compromete a dar frequência ao aluno, mesmo que ele não compareça. A reportagem não pôde entrevistar diretores, já que, segundo o artigo 247 do ECA, os diretores de escola não falam sobre a situação dos alunos com histórico de conflito com a lei.

Com o objetivo de combater esses problemas, o Instituto criou um projeto para orientar diretores de escolas sobre como lidar com o assunto. Silvia conta que o pontapé para a criação da iniciativa foi quando a diretora de uma escola da cidade - contra quem o Instituto já havia, inclusive, registrado boletim de ocorrência, por conta das negativas em receber meninos com problemas de comportamento - a procurou, dizendo que não sabia como atuar com esses adolescentes. Assim, a base do projeto envolve atividades de capacitação sobre como prevenir atitudes discriminatórias. 

Também atenta à falta de preparo docente, a Universidade de Brasília (UnB) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação (MEC) criaram, em 2014, o Curso de Docência na Socioeducação, voltado a professores da rede pública brasileira. Com carga horária de 216 horas - sendo 200 horas realizadas na modalidade a distância e 16 horas presenciais - o treinamento envolve sete eixos temáticos, que visam ressignificar e revisar as práticas docentes no contexto dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.

Investimentos em qualificação também são o eixo central de uma iniciativa da prefeitura de São Paulo que, por meio da elaboração do Simase (Plano Decimal de Atendimento Socioeducativo do Município de São Paulo), prevê a oferta de referências aos educadores, de maneira a garantir o atendimento adequado a alunos com esse perfil. Adriana Watanabe, coordenadora do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem, também conta que a prefeitura pretende implementar uma lei para criar a Comissão de Mediação de Conflitos nas escolas da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, com o objetivo de atuar na prevenção e resolução de conflitos que envolvam alunos, professores e servidores da comunidade escolar. "As situações de conflito no interior das escolas precisam ser mediadas pela equipe escolar e, nos casos mais complexos, é possível buscar o apoio dos serviços da Rede de Proteção Social em cada território."

1988-2015: Os Saldos da Violência nas Manifestações de Professores no Paraná

"A sensação é de impotência. Estávamos lutando por direitos, não estávamos agredindo ninguém. A dor não é da ferida física, mas da ferida moral."
No comparativo entre os protestos, especialistas dizem que a reação de apoio à docência e à educação pode abrir um bom momento para discutir a imagem do professor na sociedade.


Lenise Aubrift Klenk, de Curitiba

O governo do Paraná justificou que cumpria decisão judicial para prevenir invasão
à Assembleia Legislativa; 1.500 policiais cercaram a praça
Tarde de 29 de abril de 2015. Bombas de efeito moral, cães e balas de borracha. Quase duas horas de ação violenta contra professores em greve. Saldo: 213 feridos e 14 pessoas detidas. Imagens de professores caídos no chão, sangrando, sendo amparados pelos colegas correm rapidamente as redes sociais. Indignação, desamparo e impotência são os primeiros sentimentos a serem expressos naquele momento.

A cena não é inédita. Há quase 30 anos, a mesma praça do Centro Cívico de Curitiba foi palco para outro episódio violento contra os professores do Paraná. Em 30 de agosto de 1988 policiais militares avançavam com cavalos, cães e bombas de efeito moral contra milhares de docentes em greve, que protestavam por reajuste salarial e melhores condições de trabalho. Dez pessoas ficaram feridas e cinco foram presas.

Afinal, o que mudou e - principalmente o que não mudou - nessas três décadas? Há 30 anos os professores se manifestavam sob os efeitos de uma recém-terminada ditadura militar. Hoje, num estado democrático consolidado, manifestações são um direito. Se por um lado a violência do governo Beto Richa (PSDB) impressionou tanto, também provocou reação inversa. Numa era de transmissão em tempo real de imagens pelas redes sociais, a empatia com os professores foi imediata. Alguns apostam que esse pode ser um bom momento para discutir o papel e a imagem do professor para a sociedade.


► Ontem e hoje

"Você enfrenta agressões verbais em sala de aula e luta por respeito uma vida inteira. Mas não espera que a agressão venha do Estado", diz Élide Bueno, de 65 anos, professora há 37 anos. Dirigente sindical em 1988, Élide estava dentro da Assembleia Legislativa do Paraná quando a Polícia Militar investiu contra os professores naquele 30 de agosto. Em abril deste ano, estava na praça, conversando em meio aos manifestantes, quando começou a ouvir os estrondos das bombas. Ela diz que não correu. Foi se afastando, enquanto tentava acalmar outros colegas para evitar um pisoteamento. A caminhada foi interrompida diversas vezes pela ardência nos olhos e dificuldade para respirar - efeitos do gás lacrimogêneo e do spray de pimenta usados pelos policiais.

Élide traduz o que sentiu como desespero, principalmente ao pensar nas sobrinhas que moram com ela e que telefonavam pedindo que saísse de lá. "Fiquei estarrecida. A gente pondera que vive em plena democracia e a expectativa é de que fatos como aquele de 1988 não se repitam", diz a professora. "A sensação é de impotência. Estávamos lutando por direitos, não estávamos agredindo ninguém. A dor não é da ferida física, mas da ferida moral."

Os professores do Paraná estavam em greve por melhores salários e também protestavam contra o projeto que alterou a forma de custeio do fundo previdenciário dos servidores públicos, a ParanáPrevidência. A praça foi cercada por 1.500 policiais militares para impedir a ocupação da Assembleia Legislativa. Para o governo do Estado do Paraná, a operação militar se justificava no cumprimento de uma decisão judicial favorável à Assembleia Legislativa, proibindo a invasão da casa. A ação violenta dos policiais teria sido desencadeada por um grupo - identificado pela Secretaria da Segurança como do movimento Black bloc - que tentou furar o cerco de grades em torno da praça. Mas mesmo depois de detidas 14 pessoas, a violência não cessou. Os manifestantes - a maioria professores e servidores públicos de outras categorias - imediatamente recuaram, o que não foi suficiente. Em poucos minutos os primeiros feridos começavam a ser socorridos no saguão da Prefeitura Municipal, que improvisou uma sala de emergência com 50 profissionais da Saúde para prestar os primeiros atendimentos.

Para o presidente da APP-Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, Hermes Silva Leão, a ação violenta contra os servidores públicos evidencia o entendimento do Estado sobre o que é segurança pública. "Em agosto de 1988, o Brasil ainda vivia sob a Constituição do regime militar [a nova Constituição foi promulgada em outubro, dois meses depois], os professores eram monitorados em salas de aula e lutavam com muito cuidado", lembra Leão. "O que surpreende agora é que a gente ainda percebe uma herança muito forte do período de autoritarismo, de ditadura", avalia.


► Rede de apoio

Estudiosa das políticas públicas em Educação, do sindicalismo e do trabalho docente, a diretora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, Andréa Caldas, vê na comparação entre as manifestações de 1988 e de 2015 duas intenções diferentes por parte do Estado.

Em 1988, a professora lembra que o então governador Alvaro Dias foi eleito pelo PMDB, partido historicamente contrário à ditadura militar. Segundo Andréa, a ação violenta da PM provocou, assim como agora, perplexidade. "Professores estavam rezando quando foram surpreendidos por disparos de bombas e pelos cavalos, que se descontrolaram", conta. "Mas o que aconteceu foi uma ação muito episódica, pela qual mais tarde Alvaro Dias chegou a pedir desculpas." Para Andréa, o que chama a atenção em 2015 é que não se trata de uma situação de descontrole, mas planejada.

Por outro lado, é possível falar em saldo positivo. Em sua avaliação, a demonstração de uma reação da sociedade contra a repressão policial, e a criação de uma forte rede de apoio aos professores e à educação, podem ser indícios disso. "É inadequado desqualificar o movimento alegando a presença de black blocs ou a partidarização das manifestações", afirma Andréa. "Nenhum partido consegue mobilizar uma massa como essa se não houver uma insatisfação real. E a sociedade está enxergando isso", acredita.

Segundo Andréa, existe um mito de que a sociedade não valoriza a educação e os educadores. "Os professores incorporaram a ideia de desvalorização social da categoria, se queixam de que não são valorizados pelos alunos, pelos pais, pela sociedade", diz. De acordo com Andréa, os últimos episódios relacionados à greve da categoria no Paraná desmistificam esse senso comum e fortalecem a imagem pública dos professores. "Desde a primeira paralisação, em fevereiro, tem sido surpreendente o apoio da sociedade", afirma Andréa. "Anônimos chegavam ao acampamento (montado na Praça Nossa Senhora de Salete, no Centro Cívico) trazendo alimentos, oferecendo ajuda para lavar as roupas dos professores."

Em 24 horas após a repressão policial aos manifestantes, a campanha on-line "Somos todos professores" já tinha a adesão de 12 mil pessoas. A página de apoio aos professores do Paraná foi uma iniciativa voluntária do publicitário Maurício Ramos, acostumado a colocar a comunicação a serviço de causas sociais. "Quando aconteceu aquela selvageria e a reação começou tão logo as primeiras imagens foram publicadas, foi possível entender a temperatura", diz Ramos. "Percebi que a sociedade poderia aprender com aquilo que estava acontecendo."

A campanha ganhou o primeiro mote: "menos bala. Mais giz". Em 48 horas, já eram 25 mil pessoas engajadas e confirmadas em um ato de apoio aos professores marcado para a semana seguinte. "A ideia não era desgastar o governo, mas definitivamente não podemos continuar aceitando coisas que não podem ser aceitas", diz Ramos. Para o publicitário, o grande mérito do movimento que surgiu em apoio aos professores foi a transversalidade de segmentos sociais e de posicionamentos políticos. Ramos acredita que a mobilização pode ser canalizada mais adiante para pautas em defesa da democracia e do direito de manifestação.


► Mãe e filho

Logo após o confronto, circulou a informação de que um policial que trabalhava na operação tinha uma mãe professora presente na manifestação. A história é confirmada pela servidora de 59 anos, a um ano da aposentadoria, que pede para não ser identificada. Seu nome foi anunciado, junto com  outros, pelo caminhão de som que comandava a manifestação. Bilhetes chegavam às mãos dos organizadores para que fossem anunciados nomes de colegas que se dispersaram. "Fui até o caminhão e encontrei dois policiais que estavam ali a pedido do meu filho", conta a servidora. "Um deles estava chorando. Fardados, achei que um deles fosse meu filho e quase dei um abraço. Quando vi que não era, só pedi que contasse a ele que eu estava bem."

Mãe e filho só se encontraram dois dias depois, na cidade do interior do Paraná onde vivem. Convocado para a operação, o policial havia pedido que a mãe não participasse da manifestação. Segundo ela, o filho se preocupava porque sabia que havia risco de confronto.  "Mas eu disse pra ele: a quem você acha que puxou quando insiste em arriscar a vida pelos outros? Não me arrependo."

 Outro lado
Impedidos de acompanhar a sessão da Assembleia Legislativa, os professores viram de longe o projeto que altera a ParanáPrevidência ser aprovado e sancionado pelo governador do Estado, Beto Richa. Depois de defender a estratégia militar contra uma suposta ação de black blocs, o governador veio a público pouco mais de uma semana após o conflito para condenar a violência. Em nota, Beto Richa disse não poder concordar "com atitudes que coloquem em risco a vida de alguém". "Venha de onde vier, a violência e a intolerância são sempre condenáveis", disse o governador. Em entrevistas, chegou a pedir desculpas ao sindicato dos professores, à sociedade paranaense e à sociedade brasileira.

Dias depois da ação da Polícia Militar, os então secretários da Educação, Fernando Xavier, e da Segurança Pública, Fernando Francischini, foram substituídos. Pressionados, os dois anunciaram pedidos de demissão. O comandante geral da Polícia Militar, Cesar Kogut, também pediu afastamento do cargo. A Secretaria da Educação está sob o comando de Ana Seres Trento Comin. Professora por 40 anos da rede pública de educação, Ana foi recebida com boa vontade pelos professores. "Sabemos que há divergências, mas a secretária é uma professora que conhece a escola e se mostrou receptiva para discutir as nossas demandas", afirma Hermes Leão, presidente da APP Sindicato.


quarta-feira, 10 de junho de 2015

Professor deve se dedicar ao desenvolvimento humano, não à incorporação de conhecimentos

Levar educadores ao desenvolvimento de competências humanas para modificar práticas educacionais no mundo é parte do trabalho do psiquiatra indicado ao Nobel da Paz em 2015.

Entrevista com Claudio Naranjo: Pela Pedagogia do Amor

Claudio Naranjo médico Psiquiatra
Apesar da postura serena, olhar amistoso e voz tranquila, o médico psiquiatra de origem chilena Cláudio Naranjo, 83, é veemente ao falar. "A educação não educa. É uma fraude. Não se deve confundir instrução com educação", diz, apontando na política pública parte da origem de suas constatações. "É como se o objetivo dos governos fosse manter as pessoas amortecidas."


Indicado ao Prêmio Nobel da Paz deste ano, Naranjo dedica parte de seu trabalho, há 15 anos, à transformação dos processos de ensino e aprendizagem a partir do reconhecimento de si e do outro. Acredita ser esse um dos principais desafios do milênio. No universo da psicoterapia, é reconhecido como um dos mais significativos profissionais em atuação da atualidade. Há mais de 40 anos em atividade e com diversos livros publicados, Naranjo fundamentou linhas psicológicas, integrou a sabedoria oriental aos processos científicos ocidentais de estudo do comportamento humano, e fundou uma abordagem de desenvolvimento denominada SAT (sigla em inglês para Seekers After Truth), um programa holístico constituído por práticas da psicoterapia moderna, concepções espirituais, meditação, terapias corporais e de gestalt. Com a SAT, tem rodado o mundo todo fazendo palestras para gestores educacionais. No Brasil, em maio, para lançar seu mais recente livro, A revolução que esperávamos (Verbena Editora), também palestrou para pais e professores. Em sua mais nova obra, o psiquiatra afirma que a crise atual só pode ser superada por uma mudança profunda no modelo educacional - evoluindo da transmissão de conhecimento para a formação de competências existenciais. De São Paulo, de onde concedeu a entrevista a seguir para Educação, Naranjo seguiu para a Câmara dos Deputados, em Brasília, para proferir a palestra "A cura pela educação - uma proposta para uma sociedade enferma". 

O que motivou o senhor a desenvolver trabalhos no setor educacional?

No início dos anos 2000 me convidaram para um congresso de educação na Argentina. O evento reuniu mais de dois mil educadores e, pela primeira vez, tive um contato tão direto com o setor. No decorrer de minha palestra, sentia cada vez mais viva a resposta daquelas pessoas. Foi como uma ressonância empática ao que eu falava. Compreendi naquele momento a 'sede' dos educadores e a importância de levar a eles meu trabalho de formação, desenvolvido junto aos terapeutas. 

Qual seria o diferencial do seu trabalho para os educadores?

Na ocasião desse congresso foram abordados muitos temas relacionados à inteligência emocional, houve a exposição de diversas visões. Apesar disso, senti meu trabalho como algo mais transformador e, ao mesmo tempo, desconhecido da plateia. Contudo, se passassem a conhecê-lo, o trabalho teria um valor social mais abrangente. Tive a certeza de que haveria um efeito multiplicador. Afinal, os professores permeiam a formação das sociedades. Todos passamos por escolas.

Como o senhor define a proposta do seu trabalho?

Eu proponho a junção de conhecimentos e técnicas terapêuticas, como a meditação budista, a psicologia dos eneatipos, o teatro terapêutico, o teatro oriental do autoconhecimento, o movimento espontâneo e o processo terapêutico supervisionado em que as pessoas se ajudam. Isso constitui um currículo interno básico, oferecido no programa SAT. Esse programa foi originalmente constituído na Califórnia, no início dos anos de 1970, e trazido ao Brasil por Alaor Passos, há mais de 20 anos. É um trabalho avançado de autoconhecimento dirigido à transcendência da personalidade, ao desenvolvimento do amor, à melhora da qualidade de vida e da capacidade de ajuda psicoespiritual. Qualquer pessoa pode participar dele. E cada vez mais, eu trabalho para os educadores envolverem-se nesse processo. 

Qual tem sido o resultado dessas práticas junto aos professores? 

A proposta é estabelecer o desenvolvimento de competências existenciais, não técnicas. Eu as classifico como amor ao próximo (empático); amor aos ideais (devocional); amor a si (desejos); a consciência do presente; o autoconhecimento (quem sou) e o desapego. Essas competências têm sido negligenciadas ao longo dos anos. Percebo que os professores difundem, entre si, os resultados encontrados a partir de suas experiências, de sua transformação. A formação permite a eles que sejam mais completos como pessoas, consequentemente, melhores profissionais. Eles se tornam mais felizes. Lembro, ainda, que essa iniciativa pode chegar àqueles professores constantemente oprimidos pelo sistema, sem condições financeiras adequadas, sem energia. Atingi-los, contudo, não é uma condição simples. Para essas situações as autoridades governamentais e educacionais precisam dar uma resposta. 

Como essas 'competências' qualificam o educador para o seu trabalho cotidiano?

Para ser um bom educador, ou ser bom profissionalmente em qualquer área, é preciso ser uma boa pessoa. É preciso se relacionar com o outro como pessoa, ser um modelo de pessoa, e não apenas um modelo de saber.

O que o senhor quer dizer com "modelo de pessoa"?

A educação destina-se ao desenvolvimento humano, não à incorporação de conhecimentos. Para quê passar anos oferecendo ao jovem o conhecimento do mundo exterior quando já o encontramos no Google? De que serve essa prática? Isso é um roubo da vida do jovem. Isso serve para quê? Para passar anos somente para aprender a se sentar quieto? Para treinar a obediência? Nesse contexto, o educador tem imposta uma vestimenta interna de atitude, de respeito à autoridade educacional. Isso dificulta que ele tenha uma voz transformadora.

Que modelo de educação teria esse caráter transformador? 

Quando feita para o desenvolvimento humano, a educação nos leva a ser o que somos em potência, ou seja, seres completos. Mas somos como árvores retorcidas que não têm sol por um lado, e esticam seus galhos para conseguir água. Temos uma vida muito raquítica.

Quais as causas dessa situação?

Hoje se governa para a inconsciência. Como se o objetivo da educação fosse manter as pessoas adormecidas, robóticas, obedientes à força do trabalho construída com a Era Industrial, o que continua sendo a motivação opressiva da educação. Não sei, porém, dizer se essa circunstância é uma vontade. Talvez haja indivíduos querendo modificar isso, mas a inércia burocrática é grande demais.

Como se vê nesse contexto?

Como um indivíduo fora do sistema, insultando-o ao dizer: a educação é uma fraude. A educação não educa. Não se deve confundir instrução com educação. Esse modelo fracassou. Minha convicção é que se deve mudar a consciência e para isso é preciso mudar a educação. Apelo à Organização Mundial do Comércio (OMC) como uma instância com poder para fazer parte dessas modificações.

Qual o papel da OMC nessa mudança educacional? 

Eles incentivam a globalização dos negócios, mas não favorecem a globalização da ecologia, da educação, entre outros aspectos que deveriam, também, se globalizar. Eles são responsáveis por uma desumanização no mundo. Fala-se muito da pobreza e, sim, é certa a existência de muita pobreza externamente. Mas nossa pobreza interna não é tão visível, tão óbvia. A pobreza gera voracidade, pois estamos incompletos. Somos como zumbis devoradores, transformando os outros em zumbis por contágio. Isso nos torna uma sociedade inconsciente e voraz. O problema do mundo é a voracidade, do poder de ter dinheiro. Da primazia dos bens por cima do bem. Isso só pode ser resolvido se formos seres completos. Temos uma sociedade violenta.

Como incentivar educadores a fazer parte desse trabalho? 

É preciso incentivo das autoridades, de governos ou da direção das escolas. Já temos algumas experiências exitosas na Espanha e Itália junto aos professores. Obtivemos, também, resultados positivos no México e Uruguai. Mas o papel da direção das instituições, públicas ou privadas, é importantíssimo para o engajamento dos docentes. Principalmente daqueles mais desmotivados por sua condição de trabalho. 

Como engajar autoridades governamentais e educacionais?

Sempre estou disposto a convidar a todos para conhecer essa proposta educacional. Quero en­corajar as autoridades sobre o valor desse processo. Me coloco como um facilitador desse programa que acontece por meio das atividades da Escola SAT, que está aberta a todos, educadores ou não, oferecendo um programa de humanização. 

O senhor defende conceitos de pedagogia do amor. O que é isso?

Basicamente, que para a existência de uma pedagogia do amor se requer amar ao próximo como a si mesmo, um preceito do cristianismo. As pessoas não se dão conta de que não se pode amar aos outros sem amar a si. Tampouco se dão conta de que também têm a capacidade de odiar a si mesmas, ao se tratarem como escravas, se explorarem, desvalorizarem. As pessoas têm uma mente como Freud descrevia, como que dividida entre um perseguidor e um perseguido.


APRENDIZADO NO ESPELHO

''Vivemos em uma sociedade pedagogizada, em que cada um faz julgamentos sobre o outro e sobre si mesmo o tempo todo.''

Prática comum em muitas escolas, a autoavaliação pode ser prejudicial aos alunos caso não seja bem conduzida e os professores não estejam preparados para ela.

O peso que uma autoavaliação pode ter para os estudantes é
um dos pontos que preocupam os especialistas
Em grandes empresas, ao final de cada etapa de um trabalho, os funcionários são obrigados a fazer uma autoavaliação – devem refletir sobre seu próprio desempenho e se preparar para uma discussão de resultados com seus gestores, apontando seus erros e acertos e traçando estratégias e planos de carreira. Muitas escolas adotam o processo com seus alunos: esperam que eles reflitam sobre sua postura em sala, se atribuam notas, ou discutam seu desempenho com os professores. As formas variam, mas a autoavaliação tem feito cada vez mais parte do ambiente escolar, sob o argumento de ser uma prática formativa. Enquanto o método busca a eficiência na rotina empresarial, na escola, quais são seus limites e resultados efetivos? Será que as crianças estão preparadas para esse exercício? 


O professor titular da Faculdade de Educação da USP (Feusp) Julio Groppa Aquino explica que a avaliação é, em si, intrínseca ao universo pedagógico. O método, de papel fundamental para os educadores, foi implementado no ambiente escolar a partir do século 18. Julio reflete, porém, que na contemporaneidade, a avaliação acabou ultrapassando os muros da escola. “Hoje, podemos dizer que vivemos em uma sociedade pedagogizada, em que cada um faz julgamentos sobre o outro e sobre si mesmo o tempo todo. Vivemos analisando nossa postura frente a qualquer situação e essa prática do dia a dia foi incorporada também pelo mundo corporativo. Vemos que é muito frequente a busca pela formação de um profissional capaz reconhecer seus pontos fortes e fracos, se gerir sozinho e obter sucesso”, compara.

Fonte: http://revistalingua.com.br

TROCA DE CARTAS: Uma forma de estimular a escrita em sala de aula

Proposta conquista os alunos ao pôr em cena um leitor real e mostra que a produção escrita na escola pode, sim, ir muito além da dissertação entregue ao professor.

Para quem escrevemos? Em sala de aula, muitas vezes apenas para o professor, encarregado de corrigir redações e provas. Na "vida real", no entanto, a escrita é muito mais do que a capacidade de encadear frases bem construídas - como ferramenta de diálogo e interação, ela expressa parte do que nós somos e cria uma ponte para o universo das outras pessoas. Mas como motivar a escrita no contexto escolar muito mais pela vontade do que pela obrigação? Muitos professores encontram a resposta em atividades que unem o exercício escolar à realidade fora dos muros da escola, como a troca de correspondências.

Não é difícil encontrar experiências que deram certo. Em Bariri (SP), cidade com cerca de 30 mil habitantes, a professora de língua portuguesa Meire Fiuza Canal promove as trocas entre alunos do ensino fundamental de duas escolas estaduais. Ao longo dos últimos dez anos, a professora testou vários formatos e hoje aponta o que funciona melhor: aquele que estimula de fato a curiosidade do aluno e a preocupação com o interlocutor. Por isso, trocar cartas entre estudantes de escolas ou cidades diferentes tende a dar melhores resultados do que, por exemplo, pedir que as correspondências sejam escritas para familiares, pessoas que os alunos já conhecem e que muitas vezes não participam ativamente da troca.

"O que estimula é essa possibilidade de pensar que o leitor existe", conta a professora. "Até quem não gosta ou diz que não sabe escrever bem acaba participando. É muito bom para ensinar as convenções da escrita, porque o aluno não quer escrever de forma errada para o outro. Ele tem interesse em apresentar o texto para correção do professor e, depois, em saber qual foi a reação do outro estudante à carta dele." No blog De Carta em Carta, Meire registra o dia-a-dia das atividades, apresenta reflexões e conta a história do projeto - que se tornou tema de livro e levou a professora a receber o Prêmio Professores do Brasil, criado pelo MEC, em 2009.

► REDES SOCIAIS x PAPEL

Em Minas Gerais, uma outra experiência de troca de cartas começou em 1997, com apenas quatro turmas, e hoje envolve cerca de 1,5 mil alunos de nove escolas de Belo Horizonte e cidades próximas. São, principalmente, estudantes do nono ano do ensino fundamental e do terceiro do ensino médio. A troca de cartas acontece ao longo do ano e tem como ponto alto um encontro em que todos se conhecem e realizam apresentações culturais. O projeto foi batizado de Intercâmbio Cultural BH-Jabó, em referência à capital mineira e a Jaboticatubas, as primeiras cidades envolvidas na troca de correspondências.

Para a professora Ilma Pereira Nunes Moreira, coordenadora do projeto, o principal atrativo está no mistério que a atividade envolve: nas cartas, os alunos usam pseudônimos, não trocam fotos e não revelam o local exato de onde escrevem. A atividade passou a ser desenhada dessa forma após uma experiência em que os alunos descobriram os perfis de seus pares em redes sociais - um ruído que, segundo Ilma, abalou a proposta original da atividade. Outro mérito da troca de cartas, avalia a professora, está em treinar a capacidade de esperar. "O aluno sabe que vai levar um tempo até ter uma resposta. Em meio à comunicação alucinante nos meios digitais, é muito interessante como essa proposta seduz."

É possível, entretanto, conduzir a atividade mesmo com uma comunicação paralela em redes sociais. "Não acho que atrapalhe", avalia Meire. "O aluno percebe que se trata de uma outra linguagem, que o virtual é mais um canal que pode e deve ser usado. Ele sabe que pode escrever ''pq'' no Whatsapp, por exemplo, mas que na carta deve usar ''porque''."

► ACIMA DE TUDO, UMA ATIVIDADE PEDAGÓGICA

Segundo as professoras Meire e Ilma, o docente não pode perder de vista que a atividade tem, em primeiro lugar, um propósito pedagógico: trabalhar aspectos da língua portuguesa e da construção textual. Por isso, é essencial que as cartas passem por um professor antes de serem enviadas. "Nós combinamos com os alunos que, nesse contexto, a carta é pessoal, mas não é confidencial", conta Ilma. Meire aponta que a leitura prévia do professor é importante também para evitar situações que possam causar mal-estar, como um aluno escrever xingamentos endereçados ao outro. Para que a dinâmica funcione, é preciso o comprometimento de todos os professores envolvidos.

Segundo a professora Regina Celi Pereira da Silva, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o sucesso desse tipo de atividade depende justamente da forma como ela é estruturada pelo docente. "É preciso sempre tomar cuidado com o artificialismo. O objetivo é tentar aproximar essas práticas ao máximo de trocas autênticas", diz a professora. Para isso, o contexto em que a atividade será realizada é muito importante - o professor precisa estar atento às diferenças entre turmas, escolas e cidades.


► A DESCOBERTA DE OUTRAS REALIDADES

"Tia, já chegou a carta?" Os alunos do primeiro ano do ensino fundamental de uma escola particular de Cruzeiro (SP) ficam ansiosos pela resposta dos colegas. "Como já trabalhávamos com bilhetinhos, eles tinham noção do que deveriam fazer nessa atividade", conta a professora Mariana Aparecida. A escola participa do projeto Cartas pelo Brasil, do Sistema de Ensino Poliedro (SEP), que promove trocas de cartas entre crianças de diferentes cidades. Mariana conta que a distância instiga a curiosidade dos alunos e abre espaço para trabalhar com mapas na sala de aula.

João Puglisi, gerente editorial do SEP, diz que a atividade tem duas funções básicas nesse contexto: trabalhar a carta como apoio para a alfabetização e, ao mesmo tempo, despertar a curiosidade da criança em torno de questões "que não estão tão próximas dela, que se referem a lugares que ela nem imaginava existirem". A atividade é tratada como um projeto complementar, conta Puglisi. Cabe ao SEP cadastrar as instituições interessadas, mapear os alunos e indicar as escolas para a troca de cartas.

Patrícia Pereira Marques, professora de língua portuguesa em Jaboticatubas, participa do Intercâmbio Cultural BH/Jabó e tem experiência com a troca de cartas no nono ano do ensino fundamental e no terceiro ano do ensino médio. "Eu digo para meus alunos que o objetivo é conquistar o outro por meio das palavras. Noto que os estudantes do nono ano tendem a criar mais expectativas quanto ao amigo com quem eles se correspondem, enquanto o aluno do ensino médio é mais ''pé no chão'', embora também crie um vínculo muito forte", analisa a professora. "Um aluno do terceiro ano me contou que guarda até hoje as cartas do ensino fundamental."

Para a professora e pesquisadora Regina Celi Pereira da Silva, a importância da autenticidade é ainda maior no ensino médio. Uma possibilidade é estimular os alunos trabalhando com temas transversais e ligados à cidadania. Regina cita, como uma boa inspiração, a conversa entre alunos e idosos nos EUA promovida por uma escola de inglês e que ganhou grande visibilidade nas redes sociais.

Regina, que pesquisa as práticas sociais de escrita, vê com bons olhos as atividades que associam o ato de escrever à sua função interativa. "Apoio práticas que busquem sair do lugar comum. A escrita perpassa tudo e é muito limitador deixá-la só naquele ''pacotinho'' da redação tradicional, que o aluno escreve apenas para que o professor corrija. A redação escolar deve ter seu espaço, mas é importante possibilitar a produção de outros gêneros."

Meire conta que, com a troca de cartas, a melhora na capacidade escrita dos alunos é visível. "Basta comparar a primeira e a última carta que o aluno escreveu no ano", diz a professora. "Além disso, percebemos um empenho maior. Casos de alunos que, por exemplo, entregam pouquíssimas das demais atividades, mas participam de toda a troca de cartas." Ilma tem a mesma percepção: "Estudantes considerados apáticos conseguem escrever duas, três páginas. O envolvimento na aula é outro".

► COMO ESTRUTURAR A ATIVIDADE?


Rascunho de carta feito em caderno e pacote com as correspondências dos alunos pronto para ser entregue a outra turma (imagens: blog De Carta em Carta)

Não existe receita para desenhar uma atividade de troca de cartas, mas muitas vezes a experiência de outros professores pode ser útil. Veja, nos tópicos a seguir, como a professora Meire, de Bariri, organiza atualmente a atividade:

1. A professora pergunta aos alunos de uma determinada sala se eles aceitam participar da troca de cartas. Com a resposta positiva, ela convida uma sala de outra escola - pode ser tanto uma turma dela mesma quanto a de outro professor.

2. É preciso, então, listar os nomes dos alunos e definir os pares. O estudante pode escolher se corresponder com mais de um colega.

3. É hora de planejar a escrita. Normalmente, a professora apresenta a estrutura para a redação de uma carta e um roteiro de temas para que os alunos se apresentem na primeira correspondência. Os alunos começam com um rascunho da carta que pretendem enviar e depois chegam a uma redação final, apresentada à professora. Com o tempo e mais trocas, o diálogo entre os pares vai se desenvolvendo, cada um por um caminho.

4. Todas as cartas são reunidas em um pacote, que será entregue à outra sala. "É preciso tomar cuidado para não perder nenhuma carta", diz Meire.

5. Para organizar a leitura, a professora pede que os alunos leiam as cartas de resposta apenas quando todas estiverem entregues. "Nesse momento há um silêncio absoluto, em que todos estão lendo. Em seguida, é preciso conter a ansiedade - muitos alunos já querem responder -, mas a próxima etapa precisa ser planejada."


terça-feira, 2 de junho de 2015

Os 4 principais desafios do coordenador pedagógico

Apesar de estar ganhando espaço na escola, o coordenador pedagógico ainda tem de lidar com desafios que testam seus limites todos os dias. Saiba como trabalhar com a pressão e superar esses obstáculos

Por Luciana Alvarez

Articulador do projeto pedagógico, formador do corpo docente, transformador do ambiente escolar. Em sua função plena, o coordenador pedagógico se assemelha a um regente: conduz a orquestra com gestos claros e instiga um intenso senso de união entre seus pares. Mas a realidade nas escolas brasileiras ainda desafina. Sem plano de carreira específico, sem formação adequada, com demandas diversas que o desviam da função, o coordenador pedagógico enfrenta, ainda, diversos tipos de pressão. 

A formação docente, que deveria estar no centro de suas funções de articulador, é relegada a segundo plano pela falta de tempo e planejamento. A relação com a família, vitrine do projeto pedagógico da escola, sofre com mal-entendidos gerados por estereótipos consagrados. Os resultados de avaliações externas pressionam por resultados imediatos do trabalho cotidiano, que muitas vezes precisa ser regido em outro tempo. E o modelo de gestão escolar, se não é descentralizado, gera inevitáveis desgastes com a direção da escola. Coordenadores pedagógicos e especialistas em educação descortinam esses cenários e propõem possíveis caminhos de escape para essa panela não explodir. A conclusão é a de que, com diálogo, trabalho em equipe e clareza de funções, é possível, sim, afinar a orquestra.


► Desvio de função

A boa notícia é que, apesar de tantos problemas persistentes, a identidade desse profissional está cada vez mais fortalecida e seu papel dentro da escola vem ganhando reconhecimento. Mas, afinal, qual cenário tem levado os coordenadores a estarem em um ambiente tão complexo?

Nos documentos legais e nos estudos acadêmicos, a discriminação das funções do coordenador pedagógico é muito clara, mas a prática é bem diferente do que o descrito no papel, explica Vera Placco, professora da pós-graduação em psicologia da educação na PUC-SP e uma das organizadoras da coleção O coordenador pedagógico (Editora Loyola). 

Para a professora, o fato de as demandas do próprio sistema de educação, dos diretores, dos pais e alunos serem diferentes acaba contribuindo para desviar o coordenador de sua função original. "Uma escola tem sempre urgências, e o coordenador pedagógico acaba solicitado nesses momentos. Há um descompasso muito grande, com demandas contraditórias", afirma.

A falta de clareza do próprio coordenador sobre suas responsabilidades ajuda a acentuar o desvio de sua prática profissional. "A própria não formação faz com que, às vezes, o coordenador não tenha certeza de como desempenhar seu papel. Ele não se sente seguro e acaba se dedicando a outras tarefas", diz Vera. 

A falta de formação específica para o cargo seria, então, o primeiro obstáculo a ser superado. A formação inicial dos cursos de pedagogia - que seria o momento mais indicado para entrar em contato com as atribuições desse profissional - mal toca na questão. O coordenador se vê diante do desafio de buscar sua própria formação teórica, sob a necessidade de se especializar constantemente. Experiências práticas na sala de aula também são importantes, mas sabe-se que nem todo bom docente se torna um bom coordenador. "Um professor da escola que assume a função de coordenação muitas vezes não teve em seu percurso formativo algo que lhe permita ver a necessidade de interlocução com a comunidade. Isso é essencial para o trabalho", afirma o professor Guilherme Prado, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 


► Mas, afinal, qual a sua função?

Prado acredita que o centro do trabalho do coordenador pedagógico seja potencializar o repertório dos professores a favor da aprendizagem das crianças e jovens. "O trabalho se dá a partir da interlocução das necessidades da comunidade que a escola atende, com as necessidades formativas daqueles professores e as exigências do currículo", define.

Vera defende que o profissional tenha perfil apoiado em três pilares: ser um formador, um articulador e um transformador. Formador porque vai ajudar o corpo docente a se aprimorar. "Para ser um formador e ajudar o professor a lidar com seu próprio conhecimento é preciso entender de didática e metodologias. Mas não precisa ser especialista em física para discutir com o professor de física sobre como ajudar os alunos a aprenderem mais", exemplifica. O coordenador deve ainda articular as pessoas, os processos de aprendizagem e o projeto pedagógico da escola. 

Por fim, o caráter transformador visa incentivar - ou até mesmo provocar - a todos na escola a buscarem avançar constantemente. "É uma questão de atitude, que tem a ver com uma visão de educação, de sociedade e de pessoas, que implique reconhecer que estamos sempre em mudança. O coordenador deve cutucar o professor - porque fazer a mesma coisa no ano seguinte é um retrocesso", afirma Vera. 


► Batalha pela carreira

Por ser, na maior parte das vezes, uma função assumida por um professor, o coordenador muitas vezes sofre por não ter uma carreira específica. No sistema estadual do Rio de Janeiro, por exemplo, até 2011 nem sequer a função de coordenador estava regulamentada - os diretores escolhiam de maneira informal algum professor de sua confiança para assumir o papel. Mesmo instituída nas redes públicas, a questão da carreira, de forma geral, continua mal resolvida, também na rede particular. "Por não ter garantia, o coordenador fica numa posição frágil, sem certeza de continuidade, sem saber se vai estar lá amanhã", afirma Cecilia Hanna Mate, docente da Faculdade de Educação da USP. Para ela, essa é uma questão trabalhista que acaba se refletindo nos processos de ensino-aprendizagem da escola. "Mas mesmo na precariedade, há coordenadores que abraçam sua função e fazem um trabalho excelente", ressalta. 

A carreira do coordenador pedagógico deveria ser atraente, com previsão de formação continuada, e reconhecida pelos seus pares. "É preciso uma mobilização dos professores pela valorização do trabalho do coordenador. A função precisa ser cuidada porque é fundamental", defende. Cecília lembra que, quando começou sua carreira nos anos 80, os professores faziam suas aulas sozinhos, sem nenhum auxílio. O que se tem hoje, com horários de reunião previstos na semana de trabalho, embora ainda insuficiente, representa um avanço enorme. 

A negligência de muitas escolas em olhar para esse papel importante contribui para a distorção da função. "Quanto mais a escola tiver um projeto político pedagógico bem construído, mais alinhavado, mais claros os papéis de cada ator - e mais interessantes os resultados", avalia. 

E quanto mais democrática for a escola, maior a necessidade de um bom coordenador pedagógico, acredita Luiza Christov, professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Nos anos 70 já havia um profissional com nome semelhante, mas era outra concepção. Ele era um técnico que preparava apostilas, nada era discutido. O coordenador se faz necessário sob uma perspectiva democrática de escolas, em que ela vai sendo construída por professores, alunos, pais, funcionários." 


► Um novo lugar

Assim, é a partir dos anos 80, com o processo de redemocratização depois da ditadura militar, que esse profissional começa a conquistar o seu lugar. Desde então, os documentos oficiais dos sistemas escolares insistem na construção coletiva do projeto de escola. Segundo Luiza, na equipe de gestão, o diretor deve garantir as condições de infraestrutura, e os coordenadores devem promover o desenvolvimento das reflexões sobre a aprendizagem.

Mas embora a necessidade da gestão democrática seja conhecida e debatida há três décadas, o desafio prático ainda se faz presente, sobretudo quanto a se criar um tempo para encontros e elaborações coletivas, pois elas exigem "negociações, enfrentamento de conflitos, superação de vaidades e cultivo da escuta". E mesmo escolas que foram concebidas de forma democrática têm de continuar cuidando de seus espaços coletivos, para atualizar suas práticas, currículos e gestão. "A escola é movimento sempre", lembra Luiza. 

O resultado é que, quando os obstáculos são superados, todos se beneficiam. Como um efeito cascata, funcionários e professores que são ouvidos estarão mais predispostos a ouvir seus alunos dentro da sala de aula, promovendo um aprendizado mais dialogado e significativo. Alunos mais ouvidos por professores e gestores tendem a participar de forma mais construtiva, sentindo-se de fato pertencentes à escola. 

Nesse sentido, entra a questão da reorganização dos tempos escolares, para que o coordenador possa estar junto dos professores, tanto individual quanto coletivamente, de forma tranquila, que possibilite uma reflexão aprofundada. O imediatismo das respostas aos sistemas, a burocratização dos documentos e das ações, a hierarquização das relações e as condições precárias de trabalho acabam tomando grande parte dos tempos que seriam destinados à construção coletiva do currículo e projeto de escola, afirma a professora da Unesp. 

Por fim, todos os coordenadores deveriam também ter um acompanhamento à sua disposição. "Os coordenadores cuidam dos professores, mas precisam de alguém que cuide deles", defende Luiza. Esse olhar próximo seria tanto para lhes cobrar ações, quanto para auxiliá-los - assim como eles devem fazer com os professores. 

Embora o caminho seja longo, os que estudam o tema reconhecem que nessas três décadas de lutas por uma escola democrática, os coordenadores pedagógicos acumulam inúmeras conquistas. Mesmo em face de tantas adversidades, os coordenadores normalmente se mostram um grupo interessado e dedicado, observa Vera Placco, da PUC. "O que vejo é que os coordenadores querem se aperfeiçoar, pesquisar, ir para a prática. Eles estão cada vez mais preocupados, reivindicando mais espaços e formação para si próprios", relata. A batalha tem se mostrado longa, mas a maioria segue disposta a lutar.




Coordenador pedagógico: como superar os desafios


1. FORMAÇÃO CONTINUADA

■ Estar aberto ao diálogo
■ Levantar questões junto aos docentes
■ Instituir devolutivas como uma constante
■ Abandonar a "fiscalização" de salas de aula
■ Dar palavra aos professores durante reuniões
■ Destacar os acertos para só então tratar dos problemas
■ Fundamentar teoricamente suas observações
■ Definir os instrumentos que vão guiar o seu acompanhamento
■ Ajudar os professores na reflexão de sua prática, com atitude parceira
■ Variar as formações com temas que extrapolem o âmbito pedagógico

2. Relação com as famílias

■ Entender a lógica das famílias: para muitas, ainda há uma visão distorcida dos papéis da escola
■ Evitar situações de embate
■ Trabalhar educativamente, também com os adultos
■ Trazer a família para o centro da escola
■ Envolver os pais em eventos relacionados aos projetos desenvolvidos em sala de aula
■ Aproximar a família dos processos de aprendizagem das crianças
■ Ter abertura para escutar, mas nunca ferir o projeto pedagógico da escola
■ Apresentar o PPP na primeira reunião e cada ciclo


3. Avaliação externa

■ Relativizar os resultados - eles não são uma sentença final
■ Levar as informações aos professores, mas ao mesmo tempo escutá-los
■ Escapar da lógica do ranqueamento e da padronização
■ Articular ações que fortaleçam práticas pedagógicas que promovam a autonomia e a criatividade
■ Buscar caminhos próprios com a equipe
■ Estimular a gestão democrática

4. Lidar com a direção

■ Manter um bom relacionamento interpessoal, lembrando que a equipe gestora não tem posições iguais
■ Buscar posições coincidentes sobre a importância de ensinar e aprender e do papel da escola
■ Estar aberto ao diálogo, respeitando as diferentes funções
■ Valorizar o trabalho dos outros membros da equipe

domingo, 31 de maio de 2015

PEDAGOGIA DA DIFERENÇA

''As escolas têm de avaliar seu próprio ensino, entender para quê serve a avaliação e adotar formas mais evoluídas de avaliar alguém no processo educativo.''
Por, Maria Marta Avancini

Maria Teresa: educação especial deve ser complementar,
e não substitutiva.
A inclusão escolar não depende de infraestrutura ou de adaptações curriculares que atendam às necessidades individuais dos alunos com deficiência. Para ser plena e efetiva, a inclusão requer, antes de tudo, a compreensão de que a diferença é inerente ao ser humano - diferença entendida aqui não como as características específicas de uma categoria de pessoas, por exemplo, as pessoas com deficiência, mas a diferença que permeia a humanidade e que torna cada ser um único em suas capacidades e habilidades. 

Dar conta dessa característica da humanidade é o desafio que se coloca a uma escola que se pretenda inclusiva, como destaca a pedagoga Maria Teresa Eglér Mantoan, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped). A especialista, que acaba de lançar Inclusão escolar - O que é? Por quê? Como fazer? (Summus), ressalta nesta entrevista a importância, os desafios e a obrigatoriedade, por parte das escolas, de acolher todos os alunos por meio de formas mais solidárias e plurais de convivência. 

Sendo uma das maiores especialistas na área, como a senhora define a inclusão?

A inclusão vem justamente da ideia de que nós não temos o direito, de forma alguma, de tratar algumas pessoas de forma diferente e, em função disso, estabelecer um mundo diferente para elas - uma sociedade diferente, uma escola diferente. A inclusão é justamente a compreensão de que é a diferença o que nos constitui, não a igualdade. Nós temos igualdade perante a lei, o que não significa que sejamos iguais. Um erro comum dos professores, da escola e até dos pais é pensar que a inclusão é a inclusão da criança com deficiência. Mas e aquele menino que entrou na escola naquele ano, veio de outro estado, tinha uma linguagem diferente, não deu conta de todos os conteúdos? Ele também está em um processo inclusivo.




A senhora está lançando um novo livro sobre o tema. Qual é a proposta da obra?

Meu objetivo é tornar acessíveis ideias que possam parecer complexas e que, por serem inovadoras, costumam gerar uma resistência por parte das pessoas. A inclusão é uma ideia dessas, uma ideia que rompe paradigmas, que traz para a escola um grande desafio: abandonar esse padrão de pseudo-homogeneidade que ela almeja. Isso, evidentemente dentro dos cânones da escola, que são conservadores, significa alguma coisa que não só desafia, como também amedronta. As pessoas perdem a segurança de atuar dentro de determinados padrões, porque se veem diante de um cenário novo em que as crianças que estão lá não são as crianças dominadas pela escola. São crianças que mostram, principalmente, o que está faltando na escola. 

A pesquisa Conselho de Classe - a visão do professor no Brasil, da Fundação Lemann, mostrou que 7% dos professores consideram como tema mais urgente a falta de estrutura para atender as crianças de inclusão na escola. Como os professores podem ajudar na política de educação inclusiva se eles ainda se sentem desamparados?

Essa questão remete a uma parte do meu livro, o "como fazer", como os professores devem atuar numa perspectiva inclusiva para atender toda e qualquer criança. Nessa lógica, as crianças incluídas não são aquelas que precisam de uma pedagogia diferente, de uma atividade diferente, de um currículo adaptado para darem conta na escola. É a escola que tem de se modificar para atender as crianças, e não as crianças que têm de se modificar para atender a escola. Um resultado como esse mostra que a escola não entendeu isso ainda. Que estrutura é essa que os professores estão esperando? É uma estrutura de escola especial que vem para não mudar nada, e esses meninos ficarem sob a responsabilidade dela? Ou é uma nova estrutura na qual os professores têm de trabalhar a partir de um referencial de ensino e aprendizagem que não é o mesmo que a escola utiliza para dar conta do processo educativo das crianças que ela considera dignas de estarem lá? 

A escola tem de mudar?

Sim, e mudar não significa exclusivamente ter uma estrutura para atender essas crianças. Mudar, dentro do ponto de vista inclusivo de educação, é mudar para que a escola possa atender a todos sem diferenciar pela deficiência de alguns alunos. A avaliação muda, mas não muda só para essas crianças, muda para todo mundo. As atividades também. A organização curricular muda, mas não muda só para essas crianças, com adaptações à capacidade delas. À luz da Política [de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva], a educação especial deixou de ter a função de auxiliar essas crianças nos conteúdos escolares. Cabe, agora, oferecer recursos que tornem as crianças, o máximo possível, autônomas e independentes para aprender aquilo que é oferecido na escola. É difícil porque os professores e a escola querem que o professor da sala de multirrecursos assuma o papel que é do professor de sala. Os professores querem saber o que devem fazer para ensinar tabuada, para alfabetizar o menino que é deficiente. Esse é o ponto. Ninguém quer mudar aí: se há alguma dificuldade para a criança aprender tabuada, este é visto como um problema do professor de educação especial. Então o professor de classe vai até ele perguntar como fazer. 

Nessa linha de raciocínio, a Política, que prevê, por exemplo, as salas de recursos multifuncionais, não reforça essa expectativa da escola regular?

Ao contrário. A Política estabelece que a educação especial não é mais substitutiva, ela é complementar. Ela não pode substituir conteúdo, atividade, o ensino de uma classe comum. Isso era atribuição das escolas especiais e das classes especiais. Na perspectiva atual, a educação especial é complementar porque ela oferece conhecimentos para alguns alunos que a escola comum não dá, como aulas de Libras, por exemplo. O currículo da sala de recursos multifuncionais - que são as salas de educação especial - não é o currículo escolar. Qual a vantagem disso para o professor da sala comum? Ele passa a ter um esclarecimento das necessidades da criança e pode pensar, em conjunto com o professor da sala de recursos, como atuar com este aluno.

Mas por que permanece a mentalidade de usar a sala de recursos como espaço de aprendizagem de conteúdos que deveriam ser dados na sala de aula regular?

Essa mentalidade não muda por causa das cobranças ao sistema de ensino. Os sistemas de ensino se dizem inclusivos, mas a cobrança é sobre a educação especial, e não sobre a escola comum. Isso ocorre desde a esfera federal até a municipal. A esfera federal tem uma política avançada em termos de educação inclusiva, mas a Secretaria de Educação Básica do MEC continua sinalizando o contrário ao dizer: "esperamos que todas as escolas atinjam a meta do Ideb". Mas se pensarmos numa educação democrática, educação para todos, que qualidade de ensino deveríamos sinalizar para a escola? Temos de sinalizar uma pedagogia da diferença, em oposição à pedagogia da homogeneidade, que é aquela em que todos têm de aprender as mesmas coisas, no mesmo tempo e tenham resultados de aprendizagem que correspondam ao que o outro quer, e não àquilo que elas próprias definiram como seu interesse e necessidade.

Algumas escolas privadas têm adotado cota para alunos de inclusão e exigido um acompanhante para estes alunos. O que a senhora pensa sobre isso?

Isso é um absurdo. Conforme a necessidade da criança, ela tem direito a um acompanhante, mas a escola é que deve providenciar. Não é o pai que tem de pagar. Além disso, o cuidador - que deve estar disponível para qualquer aluno - pode até apoiar o professor numa situação específica, mas ele não tem uma função pedagógica. As cotas também são um absurdo. Muitas vezes isso acontece porque há alguns professores que recebem toda e qualquer criança e quando a turma dele está fechada, a escola se recusa a receber a criança. Isso não pode acontecer. Ninguém pode ter matrícula negada por qualquer diferença na escola brasileira. É o que diz a lei.

Pensando nas condições e problemas enfrentados por boa parte das escolas brasileiras, como operacionalizar a inclusão?

Primeiro, a escola precisa estar ciente de suas obrigações. Oferecer educação especial através do atendimento educacional especializado não é uma benesse de algumas escolas; é obrigação dos sistemas de ensino. A escola tem de buscar esse atendimento, os recursos e instalá-los. Também deve buscar professores especializados, embora muitos deles ainda prefiram atuar como professores de educação especial à moda antiga, dando aulas de reforço de matemática, por exemplo. Outra coisa muito importante: os professores que reclamam de seus alunos. É preciso que eles se avaliem com perguntas do tipo: Por que meus alunos não aprendem? O que estou ensinando? Como estou avaliando? Que material tenho usado para que os meus alunos tenham acesso a conteúdos que não estão apenas no livro didático? As escolas têm de avaliar seu próprio ensino, entender para quê serve a avaliação e adotar formas mais evoluídas de avaliar alguém no processo educativo. Não é avaliação formativa, não é avaliação da disciplina. Estamos falando aqui de uma avaliação que gere melhorias. Finalmente, é preciso mudar a mentalidade de que somente os alunos com deficiência são diferentes. Cada um pode evoluir de acordo com o meio onde vive, com a capacidade que tem para ser desenvolvida. Temos de fazer dos nossos alunos os mais diferentes, de modo que eles tenham consciência de que são diferentes, que nós somos diferentes. Somos pessoas que nos distinguimos pela diferença.

Maria Teresa Eglér Mantoan, uma das maiores especialistas em inclusão escolar no país, defende uma ampla transformação das escolas regulares para atender a todos, indistintamente.