Nos cem anos de Raquel de
Queiroz...
Marco Albertim *
Vale um comentário sobre O Quinze, obra tão
ou mais conhecida quanto a autora; inda que não controversa como o
perfil cultural da cearense. Já na octogésima sexta edição, a
simplicidade da linguagem – seu maior traço – ajuda a pôr em relevo a
crueza da seca de 1915.
O cenário surge, não como indício pictórico, mas
entranhado nos homens. Não poupa nem Vicente, o fazendeiro de posses
que, “Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito
entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol, que lá no céu,
sozinho, rutilante, espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que
era quase como fogo.” Para Chico Bento, o vaqueiro pobre, “O pasto, as
várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um
cinzento de borralho.”
A opressão de classe aparece no diálogo entre Chico Bento e “o homem
das passagens”. Indiferente à sorte dos retirantes, diz o homem: “Que
morte! Agora é que retirante tem esses luxos... No 77 não teve trem
para nenhum. É você dar um jeito, que passagens, não pode ser...” – Não
é um diálogo, é a confirmação do agouro. Na mesma trilha, diz o
delegado sobre o filho sumido de Chico Bento: “Não tem jeito que dar
não, meu amigo... O menino, naturalmente, foi-se embora com alguém...”
Ou no contraste entre a miséria dos retirantes na procissão e os trajes
ricos do bispo “(...)os farrapos imundos, atrás do pálio rico do
bispo(...)”.
Como boa regionalista, Raquel de Queiroz soube ainda ler o tempo
telúrico porque “O sol, no céu, marcava onze horas.” A fome permeia
todo o romance, punge quando o menino Josias devora a mandioca brava:
“(...)e enterrou os dentes na polpa amarela, fibrosa, que já ia virando
pau num dos extremos.” Na mesma altura “(...)roeu todo o pedaço amargo
e seco, até que os dentes rangeram na fibra dura.”
Conceição é uma professora que se divide entre os modos urbanos e a
bruteza do sertão; é a única que destila preconceito:
-(...)Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando
com negras?
O Quinze tem narrador onisciente, o que permite à
autora imiscuir-se no pensamento de cada personagem, sem que assuma os
rumos da abstração de cada um. Assim, na imaginação de Conceição,
mostra-a, sem perder a segurança de narradora: “Metido com cabras...
não se dava respeito... E ainda por cima, não se importava nem em
negar...”
Raquel viu a seca de 1915, no Quixadá; dá indícios de autobiografia
ao mencionar Machado de Assis: “E a moça comparou dona Inácia àquelas
senhoras de alma azul, de que fala o Machado de Assis...” Aqui a autora
se mostra supérflua.
Com Graciliano Ramos...
Vidas secas, oito anos depois d’O Quinze,
mostra a “catinga rala”, enquanto Raquel desnuda uma “caatinga
cinzenta”. Ambos tão francos quanto a crueza do cenário. Sinhá Vitória,
como a Cordulina, de Chico Bento, tem o filho “escanchado no quarto”.
Graciliano, feliz à exaustão, tão onisciente quanto a cearense,
menciona “sentimentos revolucionários” na cachorra Baleia depois de um
pontapé. A reprodução dos costumes entre as classes dá-se quando Sinhá
Vitória “Teimava em calçar-se como as moças da rua(...)”. A submissão
aos costumes se manifesta em Fabiano porque, usando “chapéu de baeta,
colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a tradição, embora
sofresse com ela.” Atento à opressão de classe, diz que Fabiano - “Se
pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente
resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo
tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da
prefeitura.” Já a submissão de classe surge quando o personagem
“(...)notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma
autoridade.” Ou quando, olhando para o odiado soldado, assunta:
– Governo é governo.
No capítulo, a subjetividade de Fabiano é explorada até a medula.
Também se imiscui com a personagem sem confundir-se com ela; assim, o
sonho de Sinhá Vitória é vestir-se de “saias de ramagens vistosas. As
vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.” Com folgada
autoridade, o autor desprende-se das páginas para dizer ao leitor que,
Fabiano, imitando “seu Tomás da bolandeira, (...) dizia palavras
difíceis(...)Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não
tinha nascido para falar certo.” Em Vidas secas e n’O
Quinze os capítulos podem ser lidos como peças autônomas. No
primeiro, o destaque está no capítulo Baleia. O leitor
deseja uma morte rápida para a cachorra, porque o autor mistura as
lembranças do animal com a agonia do fim próximo. No segundo,
impressiona a sofreguidão com que Chico Bento sacrifica uma cabra para
mitigar a fome da família; sente-se um alívio, logo interrompido com a
chegada do rico proprietário.
Mas em Galiléia...
O também cearense Ronaldo Correia de Brito põe três personagens de
perfil urbano na rudeza do sertão. Com habilidade de escritor maduro,
entrega a narrativa a um dos três primos, Adonias, personagem de
primeiro plano. O narrador se divide entre as memórias da infância, as
preocupações com os primos na viagem de volta à fazenda do avô.
Regionalista, o autor tem estilo apurado, escorreito. Quase escorrega
num clichê quando “Um relâmpago dos mais fortes clareou o mundo, no
momento em que David atravessou a porta de entrada.” Aliás, um clichê
cinematográfico. Demonstra concentração poética no foco telúrico:
“Dormi como dormem as pedras, sem sonhos.” Os diálogos são ricos de
subjetividade, como na conversa entre dois primos, ante a morte iminente
do avô:
- Ele está sofrendo?
- Está. A lucidez é um sofrimento.
No capítulo Lourenço, o autor usa três recursos. O
relato de Lourenço sobre um episódio de vingança na família, numa prosa
própria, sem volteios de romance; o ressurgimento de Adonias, com a
narrativa retomando o curso original; logo interrompida por um diálogo
rápido, com perguntas e respostas ligeiras. O autor dá uma trégua ao
leitor.
Galiléia foi o livro do ano em 2009.
* Menção honrosa dos Prêmios Literários
da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros
contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e
Panorâmica do conto em PE.
Fonte: http://vermelho.org.br/vermelho.htm